Sem-teto e Sem Fronteiras: O que temos a aprender com a nova realidade migratória nas cidades brasileiras?
Você já foi um estrangeiro? Isso é delito ou é direito?
Artigo de Rud Rafael, coordenador nacional do MTST
É muito comum pensar a questão da imigração por uma lente fria, marcada por teses pré-construídas, onde não pulsam dores e memórias, processos de desterritorialização e colonização. Pensamentos longe dos dilemas de carne e osso para lidar com pessoas que estão aparentemente fora da ordem e do lugar.
No entanto, é cada vez mais difícil ignorar essa condição. São 281 milhões de migrantes em todo mundo. Caso estivessem juntas em um território formariam o 5º país mais populoso do planeta, o 2º maior do ocidente.
O Brasil dá sua parcela de contribuição para esse processo. Estima-se que há 4.9 milhões de brasileiros vivendo fora do País. Na direção inversa, é de 1.009 milhão o número de pessoas de outras nacionalidades que habitam o país, dados do Censo de 2022. E é provável que essas taxas sejam bem maiores.
Esses números estavam caindo desde a década de 1960. Esta migração tem um perfil bastante diferente da do século XX, é preciso que se diga. Basta lembrar que em 1920 o país, que contava com uma população de cerca de 30 milhões de pessoas, tinha aproximadamente 1.39 milhão de europeus, representando 89% dos imigrantes no país. Hoje, os europeus representam apenas 20%, com mais de 60% dos imigrantes vindos da América Latina e do Caribe.
É possível contar a história do colonialismo e do imperialismo na nossa região, o Sul Global, a partir dessas ondas humanas que fluem e refluem sobre as fronteiras. Nosso objetivo aqui está longe disso, está na direção contrária. Enquanto a extrema direita se vale da tática de desumanizar essas pessoas para extirpá-las, devemos, por uma questão de método e de princípio, nos aproximar, conhecer e construir saídas junto com essas pessoas.
Como partir para a construção de saberes e tecnologias imigrantes?
Foi pensando nisso, que o Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores Sem-Teto (MTST) criou em 2024, a partir do seu setor de relações internacionais, o Centro Popular de Pesquisa (CPP).
E o que esse Centro trazia de diferente? Primeiro, a possibilidade de produzir conhecimento a partir das ocupações e dos territórios periféricos. Segundo, colocar o imigrante no lugar de sujeito que constrói esse conhecimento. Uma ousadia necessária e simbólica, que contou com representantes do setor e com pessoas de Cuba, Venezuela e Haiti que se encontravam nas ocupações do movimento.
Iniciou-se então uma dinâmica de estruturação do projeto, da escuta às histórias de vida e se seguiu na elaboração da proposta de um censo das ocupações. O Censo, que é uma ferramenta de identificação dos imigrantes, passava a ser também um equipamento para os próprios imigrantes lerem o território.
E mais: tais estatísticas acabaram servindo como busca ativa de outros imigrantes. Foi na busca por ir tecendo uma rede e ligando esses sujeitos que surgiu o I Encontro de Imigrantes do MTST. Realizado em maio deste ano, o espaço reuniu imigrantes da Bolívia, Colômbia, Haiti, Nigéria, Paraguai, Peru e Venezuela, um total de 50 representações de várias ocupações da Grande São Paulo.
E que experiências guardam os imigrantes?
Entre os fatores que trazem famílias a migrarem para o Brasil e que as levam chegar até o MTST, temos um universo amplíssimo. No geral, a esperança de reconstruir suas vidas após um momento difícil, como o caso, por exemplo, de famílias haitianas que chegaram ao Brasil após o terremoto que deixou mais de 1 milhão de pessoas desabrigadas e que o acolhimento do Governo brasileiro (na presidência de Dilma) foi elemento determinante.
Para além da escuta desses casos, foi possível pensar na identidade imigrante não como um ser isolado, vivendo os dilemas de estar longe da sua terra na solidão política. Foi possível ajudar a forjar a ideia desse sujeito como um sujeito coletivo, dotado de poderes e saberes importantes para transformar a realidade, a partir da organização e produção de novos territórios.
Foi possível identificar as principais problemáticas vivenciadas pelos imigrantes e as formas de enfrentá-las a partir da escuta. E essa escuta foi reveladora. Trouxe à tona personagens como o do haitiano que fala três línguas e trabalha no telemarketing da Air France, ou a do seu conterrâneo que ensina crioulo haitiano nas ocupações, da boliviana que trabalha com arte educação e recita poesias e outras histórias que estão para além do sofrimento das perdas, das violências e das distâncias.
É preciso que se diga que eles exigem, sim, uma resposta à questão das violências e de seus direitos negados. Como principais problemáticas apontadas estão a barreira com a língua, a xenofobia vivenciada e a dificuldade em validar e acessar documentos (que vão desde de documento de identificação até diplomas).
Tais demandas abrem um campo importante de possibilidades, como a criação de cursinhos populares de línguas, o intercâmbio de sabores em espaços de cozinhas solidárias e de saberes construtivos para a produção de moradia e o incremento da experiência do Centro Popular de Pesquisa, formulando metodologias de trabalho que reflitam essas resistências do Sul.
Acreditamos que essa é uma tarefa fundamental para produção das cidades que acreditamos, que sejam plurais, diversas, solidárias e de um internacionalismo de base, que se alimenta das tecnologias populares que surgem desses encontros e das soluções que os povos são capazes de desenvolver para não apenas resolverem seus problemas, mas para mudar radicalmente o sentido de viver em comunidade.
Essas lições já estão sendo aprendidas no compartilhamento da prática política dos movimentos, por exemplo. Quando o MTST se nutre da experiência de comedores e merenderos para criar as Cozinhas Solidárias, quando intercambiamos processos de formação com organizações colombianas ou de construção de casas com pobladores chilenos. São essas redes entre os povos e o alcance de suas tecnologias populares que o sistema capitalista, que produz cidades tão excludentes, teme, e são elas que seguiremos fiando para socializar territórios e poder.