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Torturador da Ditadura | TJSP rompe com jurisprudência do STJ ao considerar prescrita ação contra Ustra

19 de outubro de 2018

STJ tem jurisprudência consolidada contra prescrição cível da tortura e de crimes praticados durante a ditadura; dia 23 o TRF-3 julga ação criminal movida pelo Ministério Público pelo assassinato de Merlino.

Por Luciana Araujo

De forma unânime, nesta quarta-feira (17 de outubro), a 13ª Câmara Extraordinária de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo considerou prescrito o direito da família de Luiz Eduardo da Rocha Merlino demandar indenização pelos crimes que vitimaram o jornalista após ele ter sido levado da casa da mãe às dependências do DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna) do Segundo Exército, em São Paulo, durante a ditadura empresarial-militar.

O argumento do relator, desembargador Luiz Fernando Salles Rossi, foi de que o prazo para ajuizamento da ação seria de 20 anos, contados a partir da promulgação da Constituição de 1988. Como Merlino foi assassinado em 19 de julho de 1971 e o processo teve início em 2010, a Câmara deu por extinto o direito de ingresso com pedido indenização, sem julgar o mérito da ação (a análise sobre os crimes dos quais Ustra é acusado).

O STJ tem jurisprudência consolidada contra a prescrição cível da tortura e do direito a indenização por crimes praticados durante a ditadura. Apesar disso, o voto do relator foi seguido pelos outros dois integrantes da Câmara, desembargadores Mauro Conti Machado e Milton Paulo de Carvalho Filho.

O processo indenizatório da família Merlino é movido contra o coronel do Exército reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra, que morreu em 2015 sem responder pelas dezenas de crimes dos quais é acusado. O que os parentes buscam é o reconhecimento do papel dos agentes do Estado brasileiro e do próprio Estado na morte de cidadãos que se opunham ao regime dos quartéis. Antes de propor a ação indenizatória a família de Merlino já havia ajuizado outro processo, declaratório, visando que o Poder Judiciário reconhecesse Ustra como um agente estatal responsável pela morte do jornalista. No entanto, o TJ considerou que aquela não seria uma peça processual correta, daí a opção da família pela tentativa de condenação indenizatória.

Contra a jurisprudência

A decisão causou estranheza a juristas e repulsa de defensores de direitos humanos e familiares de Merlino e de outros mortos e desaparecidos durante a ditadura empresarial-militar que se abateu sobre o país entre 1964 e 1985.

“A decisão é uma espécie de licença para torturar. Um absurdo em uma ação contra tortura falar em prescrição, e nessa situação em que estamos é ainda mais terrível. Nós vamos recorrer aos tribunais superiores, inclusive porque isso vai contra a jurisprudência do STJ, para não falar de toda a jurisprudência internacional”, afirmou Angela Mendes de Almeida, companheira de Merlino à época em que ele foi assassinado sob tutela do Estado brasileiro.

Ouvido pela reportagem do Sintrajud, o desembargador aposentado Márcio Moraes afirmou que “me estranha a decisão porque o crime de tortura é imprescritível, dado que é crime de lesa-humanidade. Li a sentença [de primeira instância] e me impressionei com ela. Acredito que no STJ as autoras têm chance boa, porque a jurisprudência do Tribunal as favorece, e com muito bons fundamentos”.

Ex-presidente do TRF-3, Márcio Moraes foi o responsável, quando ainda era juiz de primeira instância em início de carreira, pela inédita condenação do Estado brasileiro, em 1978, no caso do assassinato do também jornalista Vladimir Herzog, decorrente da tortura sofrida nas dependências do mesmo DOI-CODI. Em julho deste ano o país foi condenado pela Corte Internacional dos Direitos Humanos (CIDH) pelo descumprimento reiterado das condenações já determinadas para que sejam apurados crimes da ditadura no caso Herzog.

Em 2012, Ustra fora condenado pela juíza Claudia de Lima Menge, da 20ª Vara Cível da Capital, a pagar uma indenização no valor de R$ 100 mil à família de Merlino. O coronel recorreu, mas como o processo é cível, tem continuidade.

Ustra é torturador

O recurso analisado pelo TJSP na tarde de ontem atingiria o espólio do ex-militar, que em 2012 já fora reconhecido pelo mesmo Tribunal como torturador da família Almeida Teles. Ustra, que comandou o DOI-CODI entre 1970 a 1974, chegou a levar os filhos de Maria Amélia de Almeida Teles e César Teles, militantes presos e brutalmente seviciados, para ver os pais na sala de tortura. As crianças tinham então 4 e 5 anos de idade. O mais novo, Edson, chegou a perguntar porque a mãe “estava azul” e o pai “estava verde”, em decorrência dos maus tratos sofridos. A irmã de Maria Amélia, Criméia Almeida, foi torturada grávida. Os relatos constam do relatório da Comissão Nacional da Verdade.

Enquanto chefiou o esquema estatal de repressão, o “Doutor Tibiriçá”, codinome usado por Ustra para evitar ser identificado por suas vítimas, era o terror dos presos políticos. O coronel chegou a ser denunciado inclusive por estupro a mulheres detidas ilegalmente.

A decisão de ontem do TJSP não muda nada em relação à condição de Ustra de torturador declarado pelo Estado brasileiro. No entanto, evidencia que o momento vivido no país coloca em risco os avanços civilizatórios que o ordenamento jurídico internacional pacificou ao tornar a tortura um crime inafiançável, imprescritível e que atinge toda a humanidade.

Tal postura dentro do Poder Judiciário é criticada pela direção do Sintrajud por legitimar atitudes como a do atual líder nas pesquisas de intenção de voto à Presidência da República. O deputado e capitão reformado do Exército Jair Bolsonaro tem Ustra como um “herói nacional”, e já declarou que o erro da ditadura empresarial-militar no Brasil teria sido não ter “fuzilado uns 30 mil”.

Relativização da ditadura e da tortura

Testemunhas que acompanharam a audiência contaram à reportagem que o relator da 13ª Câmara, ao analisar a condição de aceitabilidade do recurso do coronel à decisão de primeira instância que o condenara pela morte de Merlino, relativizou o que se passou no Brasil sob os anos de chumbo. “Foi horrível, horrível. O voto do relator foi um negócio medonho. Ele usou termos como ‘suposta ditadura’ e ‘suposto torturador’, colocando em dúvida a própria ditadura”, relatou a atriz Fernanda Azevedo, vencedora do Prêmio Shell 2013.

A professora da Unifesp e pesquisadora que acompanha o julgamento do caso Merlino, Carla Osmo, reiterou o relato de Fernanda. “Após apresentar o argumento de ordem formal pela prescrição do direito de pleitear a indenização, o relator foi absolutamente desrespeitoso com a família e com todas as vítimas da ditadura, afirmando que como entraram com a ação contra um agente do Estado teriam que comprovar a culpa do Ustra, sendo que há muitas testemunhas oculares e ele já foi condenado por tortura em outro processo”, reiterou.

A advogada Carla Osmo relatou ainda à reportagem que a credibilidade das testemunhas também foi colocada em xeque pelo relator sob o argumento de que estavam na condição de presos políticos quando afirmam ter presenciado os crimes pelos quais Ustra é acusado no caso Merlino.

Ela lembrou que a ditadura impunha censura, espalhava o terror com a tortura, desaparecimentos e mortes, ocultava provas, criava versões falsas para os eventos. Só em 1995 o Estado brasileiro reconheceu a sua responsabilidade pelas mortes e desaparecimentos. Agentes do Estado já foram denunciados até por veículos de mídia por queimar ou destruir documentos comprobatórios dos crimes da ditadura, o que evidencia as dificuldades para que as famílias e a sociedade busquem reparação, a verdade histórica e justiça.

O próprio relatório da Comissão Nacional da Verdade, que funcionou entre 2012 e 2014, recomenda a retificação do atestado de óbito de Merlino.

A ditadura registrou a morte de Luiz Eduardo como resultado de atropelamento durante tentativa de fuga. O médico-legista que assinou o laudo necroscópico, Abeylard de Queiroz Orsini, foi denunciado em 2014 pelo Ministério Público Federal por falsidade ideológica.

Julgamento criminal

No próximo dia 23 de outubro vai a julgamento no TRF-3 o processo criminal movido pelo Ministério Público. Originalmente eram denunciados Ustra, os policiais Dirceu Gravina e Aparecido Laertes Calandra por homicídio doloso qualificado cometido contra Merlino, por motivo torpe, com emprego de tortura que impossibilitou a defesa da vítima. Além de Orsini, pela acusação de falsidade ideológica.

A punibilidade criminal de Ustra foi extinta com sua morte, mas ainda cabe condenação aos outros dois acusados. Outro participante da farsa médica contra Merlino foi o legista Isaac Abramovitc, que também legitimou a tentativa do Estado de ocultar o assassinato do jornalista, assinando o laudo apontado como falso pelo MP. Abramovitc já havia falecido quando este processo foi iniciado.

A reportagem do Sintrajud continuará acompanhando o caso, conforme deliberação de assembleia da categoria por denunciar o papel do Judiciário na retirada de direitos e na sustentação do processo de estrangulamento democrático em curso no país. A categoria decidiu em seus fóruns deliberativos colocar-se contra os setores reacionários que defendem “intervenção militar” ou negam os crimes da ditadura.

“Essa decisão vai contra tudo que já foi reconhecido sobre os crimes contra a humanidade praticados por agentes do Estado durante a ditadura, sendo Ustra um destacado torturador. Mas não invalida o que já foi julgado ou revelado. Volta ainda à tona o debate sobre o alcance da Lei da Anistia, embora este não tenha sido tema de debate no processo em causa, que também visou livrar esses agentes. Inclusive muito da profunda crise política atual tem relação com o fato de que não se levou a cabo a efetiva apuração e punição desses crimes”, ressalta o diretor do Sintrajud e servidor do TRT-2 Tarcisio Ferreira.

 

 

Fonte: Sintrajud