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Senado decide entre proteção aos trabalhadores ou liberdade às empresas, por Leonardo Sakamoto

11 de julho de 2017

Fonte: Blog do Sakamoto

Desde que foi criada em 1943, a Consolidação das Leis do Trabalho sofreu um rosário de modificações que transformaram significativamente o seu conteúdo original. A diferença dessas mudanças ocorridas ao longo de sete décadas com o pacote da Reforma Trabalhista – que pode ser aprovado, nesta terça (11), pelo Senado Federal – é que ele não altera apenas o conteúdo, mas o sentido da CLT. De um texto que protege o lado mais fraco da relação para um que aumenta a liberdade do lado mais forte.

Em qualquer país onde se respeita a dignidade humana, as regras que regulam a compra e venda da força de trabalho, sejam elas escritas na forma de leis ou baseadas em conjuntos de jurisprudência, são pensadas para garantir proteção aos mais vulneráveis, aos trabalhadores, que não contam com nada além de sua força produtiva para sobreviver. As regras, portanto, não existem apenas para girar o motor da economia (e, para alguns, da história), mas também para o respeito a um mínimo patamar civilizatório.

Caso possam ser negociadas livremente, os padrões que tratam de duração da jornada, condições mínimas de saúde e segurança, piso de remuneração, descanso semanal e férias, compensações por insalubridade e por horas-extras, por exemplo, serão paulatinamente reduzidos para categorias de trabalhadores mais vulneráveis e menos organizadas.

Acompanho o combate ao trabalho escravo no Brasil desde 1999 e durante todos esses anos participei de muitas ações de resgates de trabalhadores, vendo coisas que não gostaria de ter visto. Em uma delas, no mesmo Pará que, de tempos em tempos, é palco de chacina de trabalhadores rurais, um homem recém-liberto me confidenciou: ”Olhe, na minha terra a necessidade é tanta que se passasse um carro [de som] propondo trabalho em troca de comida e abrigo apenas, ia chover de gente atrás aceitando o negócio”.

Como um país em que depoimentos como esse são corriqueiros (desde 1995, mais de 50 mil pessoas foram oficialmente resgatadas da escravidão, empurradas para o cativeiro pela pobreza e enganados por empregadores) pode ser inocente e imaginar que a livre negociação entre patrões e empregados sempre resultará no melhor para os dois lados?

A vulnerabilidade de grupos de trabalhadores sempre foi usada para possibilitar a sua exploração, reduzindo custos de produção. Quando isso se conecta com modernas cadeias produtivas globais, a intensidade da exploração aumenta substancialmente. Você não precisa obrigar um peão a cortar 14 toneladas de cana por dia nas regiões produtoras não-mecanizadas. Ele sabe que terá que fazer isso para poder sustentar sua família, que ficou longe, e a si mesmo no período de entressafra. O sistema é engenhoso, construído de forma a garantir que o próprio condenado dê o nó em sua forca.

Não precisamos chegar ao extremo de um ”contrato” de trabalho por comida e alimentação – se bem que o projeto de Reforma Trabalhista Rural, que circulou até ser execrado pela sociedade, propunha algo bem semelhante a isso. O projeto de Reforma Trabalhista que será votado hoje vai garantir muitas formas criativas de precarização do trabalho através da redução dos custos trabalhistas – seja via a ”livre” negociação com sindicatos fracos ou corruptos, seja através da terceirização ampla, com a redução de condições de saúde e segurança.

O pior: o projeto também impõe entraves à Justiça do Trabalho, responsável, até agora, por garantir que o mercado de trabalho não funcione (apenas) com base na lei da selva, ou seja, na sobrevivência do mais forte.

Paradigmático, portanto, que Rodrigo Maia (DEM-RJ) esteja muito próximo de ser o novo ocupante da Presidência da República. Ele, que afirmou que ”o excesso de regras no mercado de trabalho gerou 14 milhões de desempregados”, também disse que a ”Justiça do Trabalho não deveria nem existir”.

De todas as novas ações judiciais movidas no país, a mais frequente são reclamações por ”rescisão do contrato de trabalho e verbas rescisórias”. Esse item representou 11,75% do total ou 4.980.359 novas ações, sendo o assunto mais recorrente de todo o Poder Judiciário brasileiro. Dentro apenas da Justiça do Trabalho, o tema corresponde à quase metade (49,47%) dos novos casos. Os dados fazem parte do Relatório Justiça em Números 2016 (ano-base 2015), produzido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

A Reforma Trabalhista está prestes a acabar com essas reclamações transformando o que é hoje ”errado” em ”certo”, num passe de mágica, e tornando inócuas reclamações de trabalhadores sobre suas próprias condições de trabalho. Tudo em nome de uma ideia questionável de desenvolvimento.

Para os poderes político e econômico, chegou a hora do trabalhador brasileiro dar (mais) uma cota de sacrifício. O dia de hoje pode ficar marcado como aquele em que nos aproximamos de algumas nações estrangeiras no que diz respeito à condição de vida dos trabalhadores. Bangladesh, Camboja, Somália, aí vamos nós.