Rio de Janeiro sob intervenção do Exército: entenda motivos e consequências
Não foi só o Rio de Janeiro e a sua população que acordaram surpresos com a decisão do presidente Michel Temer (MDB) de decretar a intervenção federal, por parte do Exército Brasileiro, na área de Segurança Pública do Estado fluminense. O Brasil inteiro ainda vem digerindo e interpretando a notícia que começou a circular na madrugada de quinta para sexta-feira, 16 de fevereiro.
A decisão foi tomada antes do dia raiar, em meio a uma reunião tensa, segundo afirmam os principais meios de comunicação (ou seja, aqueles mais envolvidos e, portanto, mais próximos do que se passa nos bastidores da política nacional). Além de Temer, estiveram presentes ministros e representantes do Congresso.
Agora, Senado e Câmara dos Deputados têm 10 dias para aprovar ou rejeitar a intervenção, que deve se prolongar até o dia 31 de dezembro de 2018. Ela já tem o aval do governador do Rio de Janeiro, Fernando Pezão (MDB).
Mais do que Segurança Pública, Intervenção é Política
A verdade é que o governador Pezão tem se enfraquecido politicamente nos últimos meses, quando acompanhou aflito as investigações da Operação Lava-Jato no Rio de Janeiro, que já foi responsável por mandar para a prisão, entre outros, o ex-governador Sérgio Cabral (MDB) — seu antecessor e amigo próximo.
Não é à toa que, diante de tamanha fragilidade política, Pezão tenha dado o seu aval para a intervenção anunciada sem resistências, praticamente assumindo a incapacidade do seu governo para gerir o Estado; declarando a falência da pasta. Roberto Sá, secretário de Segurança Pública, já está afastado das suas funções.
A calamidade na segurança do Rio é evidente, e ganha novos episódios a cada dia. São frequentes os relatos de enfrentamentos entre forças policiais e agentes do tráfico organizado, que deixam inocentes mortos na esteira da guerra às drogas.
Por outro lado, a mídia convencional não perdeu tempo em explorar ao máximo a tragédia responsável, recentemente, pela ocupação militar na maior comunidade da capital, a Rocinha.
“Quem é favelado conhece a violência do exército e dos militares desde sempre, mas o que pode acontecer nos próximos dias ninguém sabe” – Marielle Franco, vereadora PSOL/RJ.
A tática vai além da fragilidade política: também tem como objetivo desviar a atenção de brasileiros e brasileiras das recentes retiradas de seus direitos, como a Reforma da Previdência.
O próprio jornal O Estado de S. Paulo antecipou os motivos políticos que se escondem por trás da medida:
“Pesquisas encomendadas pelo Planalto mostram que a segurança é uma das principais preocupações da população, ao lado da saúde. Na avaliação de auxiliares de Temer, a iniciativa de decretar a intervenção na segurança pública do Rio e criar um ministério para cuidar da área passa a imagem de que o governo federal não está inerte e age para enfrentar o problema, embora a competência nesse setor seja dos Estados.”
“Não podemos permitir que Temer utilize essa intervenção como cortina de fumaça pelos problemas sociais e morais de seu governo, assim como não podemos permitir que se abra um precedente autoritário no país, que, no final das contas, serão os mais pobres que pagarão o preço mais caro.” – José Afonso, militante do MTST.
O que muda na prática
O Exército Brasileiro vai assumir toda a segurança pública do Estado do Rio de Janeiro, com responsabilidade sobre as polícias (civil e militar), bombeiros e a área de inteligência — inclusive com poder de ordenar a prisão de seus membros. O interventor responsável é o general Walter Braga Neto.
Na prática, o general vai substituir o governador do Rio na área de Segurança Pública.
No entanto, mais dúvidas têm surgido sobre o tema, o que aumenta a importância de textos como este, da CartaCapital, que detalha “O que é uma intervenção federal?“:
“A intervenção federal é um procedimento regulado pelos artigos 34 e 36 do capítulo VI da Constituição. Em condições normais, o governo federal não pode intervir nos estados, mas o artigo 34 traz situações em que isso pode ocorrer, como manter a integridade do território brasileiro, reorganizar as finanças de uma unidade da federação ou repelir uma intervenção estrangeira.
No caso do Rio de Janeiro, foi invocado o inciso três do artigo 34, que permite uma intervenção federal para ‘pôr termo a grave comprometimento da ordem pública’ (…) A Constituição determina que o decreto de intervenção ‘será submetido à apreciação do Congresso Nacional”.
“Tanto pediram intervenção militar que ela chegou. Estamos em guerra, mas muita gente ainda parece tratar o golpe como apenas um contratempo na institucionalidade, apenas o recreio no intervalo das aulas.”
Repercussão na Reforma da Previdência
Um dos pontos mais martelados pelos porta-vozes do governo e seus respectivos representantes na grande imprensa é a consequência da intervenção na Reforma da Previdência. Isso porque, conforme afirma o texto constitucional, durante uma intervenção não é permitido qualquer alteração na Constituição.
Ou seja, como a Reforma da Previdência trata-se de uma PEC (Proposta de Emenda Constitucional), a sua votação estaria automaticamente suspensa. Porém, conforme frisa principalmente o presidente da Câmara Rodrigo Maia (DEM), a intervenção poderia facilmente ser interrompida, durante dois dias, para a votação de PECs.
O fato é que o governo não possui o número de votos necessários para a aprovação da Reforma da Previdência, e por isso ameaça e adia a sua votação constantemente. Esse cenário só reforça a extrema necessidade de uma enorme mobilização contra a Reforma, já agendada para a segunda-feira, 19 de fevereiro.
Causas e consequências
Aos poucos, as causas e consequências do decreto de Temer vão alcançando diferentes compreensões:
>> O jornalista e colunista Leonardo Sakamoto, em seu blog no UOL, salienta a tragédia que o decreto representa para a democracia, além de relembrar outra medida que faz eco à tal decisão, o julgamento de crimes de militares contra civis agora ser atribuição da Justiça Militar:
“Ainda bem que não vivemos na democracia. Se assim fosse, a República iria chorar de desgosto. Ninguém nega que o Rio vive uma profunda crise. Mas retirar o comando civil em um contexto como esse é uma decisão equivocada. As Forças armadas são treinadas para matar, seus membros não têm liberdade para tomar decisões que levem em conta a situação do local em que estão em um determinado momento. Esse é, inclusive, um dos principais pontos de discussão sobre a necessidade de desmilitarização da formação policial.
(…) A manutenção forçada de dois governos, Pezão e Temer, cuja honestidade e competência, além da legitimidade já citada, são questionadas diuturnamente seria suficiente para levar a massa às ruas.”
>> Jornalista e ativista, com trabalhos importantes junto à Anistia Internacional no Brasil, Rebeca Lerer também pode ser considerada especialista no que se refere às políticas de drogas no Brasil — e sua consequente guerra, resultado da criminalização das substâncias ilícitas que também fortalece o tráfico e aumenta a violência.
Ela defende que “A intervenção militar federal no Rio não é parte do ‘golpe do Temer’, é resultado de décadas de erros e corrupção na segurança pública e na gestão da cidade e seu entorno, de políticas de guerra contra os favelados disfarçada de combate às drogas, de tráfico de armas e de influência, de arregos, de violência policial, de abuso, de violação do direito à vida, de omissão do Ministério Público, de conivência da imprensa, de punitivismo armamentista, de racismo, de terrorismo de Estado.
Quem acompanha a luta diária de gente que mora no meio do #fogocruzado sabe que a militarização da vida tem sido a regra, não a exceção há pelo menos dez anos, com os esquemas especiais para Copa, Olimpíadas e Papa deixando memórias concretas da ocupação pelo exército.(…)”
“É preciso lembrar que já houve intervenção militar no Rio de Janeiro, especialmente nas favelas cariocas desde a Maré até a Rocinha, passando pelo Jacaré.
Os resultados foram sempre os mesmos: Desperdício de dinheiro público, mortes de crianças e inocentes, desrespeitos aos direitos básicos e humanos dos moradores de favelas. Em ambos os casos, o crime organizado continuou agindo antes, durante e depois do circo armado pelos governos e exército.” – Brigadas Populares
>> Figura de destaque no PSOL, o deputado federal Ivan Valente também analisou o cenário atual da Segurança Pública do Rio, após o decreto de intervenção:
“Temer tenta com a intervenção militar no Rio de Janeiro esconder o fracasso do seu governo. Escancara as portas para aprofundar a barbárie contra o povo das favelas e comunidades. A intervenção militar anunciada pelo governo Temer é mais uma medida desesperada para tentar tirar o governo da crise e não o Rio de Janeiro. O presidente golpista usa um problema gravíssimo para tentar na mão grande mudar a pauta, desviar o foco.
Temos uma presidência acuada por denúncias gravíssimas (…) O governo tenta ainda usar a intervenção como uma grande chantagem, com uma tentativa de tirar do seu colo o problema de não ter conseguido votos suficientes para aprovar a Reforma da Previdência, como uma espécie de moeda de troca para tentar responsabilizar o parlamento pelo seu fracasso. Uma cartada desesperada que tem tudo para agravar ainda mais a crise.
O Rio precisa de fato é de uma intervenção democrática, de uma mudança radical por meio de eleições gerais no comando do governo, com o enfrentamento da segurança pública como um problema mais amplo que deve ser enfrentado de forma planejada, com investimentos públicos, com políticas sociais, com desenvolvimento econômico e combate à desigualdade.”
>> Assista, abaixo, a análise do também deputado federal pelo PSOL, Glauber Braga: