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Racismo nas faculdades de Direito | “Mulata, analfa, postura de macaco”: Racistas nunca foram punidos. Ouça músicas de 2005

11 de junho de 2018
Alunos da PUC-RIO em manifestação na quinta-feira, 7 de junho, contra atos racistas que aconteceram nos jogos jurídicos. | Foto por Juliana Nascimento/ Coletivo Nuvem Negra

Um grupo de estudantes  de direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro se preparava para mais uma edição dos Jogos Universitários quando se deu conta de que precisava de músicas para aquecer a torcida. No calor dos debates sobre que temas as canções deveriam abordar, não havia – para os estudantes da Faculdade Nacional de Direito, a FND, uma das mais tradicionais do país – assunto mais urgente do que zombar dos negros. O ano foi 2005.

Os negros não estavam nas salas da FND. Pouco tempo antes, outra faculdade de direito, ligada a Universidade do Estado do Rio de Janeiro, havia sido a primeira do Brasil a criar um sistema de cotas em vestibulares. Seus cursos de graduação estabeleceram que 50% das vagas do processo seletivo deveriam ir a alunos egressos de escolas públicas cariocas. Os Rabugentos, nome do grupo do Direito da FDN, direcionaram suas vozes contra os cotistas, se apropriando da melodia de Carro Velho, de Banda Eva.

“Cheiro forte de suvaco/ postura de macaco / eles são favelado (sic)

Cota pro negão do lado/ só tem mulher baranga/ só tem homem viado

Eu sou do bonde do pau de aço/ ao natural sem camisinha/ eu faço

No golpe do azar fez uma opção/ escolhendo a UERJ/ que decepção

Um tal de Garotinho/ sem qualificação/ pôs o sistema de cotas na instituição

Sou da Nacional/ da FND/ e vou mandar/ a UERJ se foder

Mulata/ analfa/ prestou vestibular de dentro da prisão

Mulata/ analfa/ a cota da UERJ foi a solução”

Treze anos depois que as melodias dos Rabugentos foram gravadas em CDs – e vendidas por um ou dois reais aos torcedores –, os gestos racistas se repetiram no último final de semana, desta vez vindos de alunos da Pontifícia Universidade Católica do Rio.

Durante os Jogos Jurídicos Estaduais, em Petrópolis, na Região Serrana do Rio, alunos da instituição privada aumentaram o fogo de uma chapa que vem fervendo há anos, sem punição, quando uma casca de banana foi arremessada contra um aluno da Universidade Católica de Petrópolis. Mais tarde, alunos da Pontifícia imitaram macacos, batendo no peito com gritos de “uh uh uh” para reagir aos gritos da torcida da UERJ que entoava, em protesto ao ato, o canto “PUC racista”.

Como num filme de terror em que o tempo não passa, letras de músicas começaram a circular na internet, recordando os tempos dos veteranos de outras universidades que deram à UERJ o apelido de “Congo” por aceitar alunos cotistas. Mesmo depois que outras faculdades aderiram às cotas, alunos pobres negros de periferia continuaram preferindo a UERJ pelo acesso mais fácil de transporte público.

“Bota o Congo pra mamar/ Ele é cotista e sempre quer que eu banque

Mas eu só vou gozar se eu gozar

Chupa sem o dente pra me deixa contente

Boto o Congo pra mamar…

É favelado vou ajudar um pouquinho

Então toma um trocadinho vai, toma um trocadinho…”

Eu, Eliana Alves Cruz, sou uma mulher negra, escritora, filha de um ex-aluno da FND, irmã de duas ex-alunas que também passaram pelo famoso largo do Caco. Não contive as lágrimas ao escutar as 18 gravações de músicas que a mim chegaram pelas mãos de pessoas que lá estudaram entre 2005 a 2009. Chorei ainda mais ao ler outras letras de composições semelhantes feitas por estudantes de outras instituições. Agora, alunos da PUC entoam músicas racistas para zoar os racistas da FND – a faculdade federal também aderiu às cotas.

“Ih já tem cota, UFRJ já tem cota

Cheia de mendigo do campo de Santana…

Logo você que zoava o congolês, o congolês (UERJ)

UFRJ se fudeu, o pobre deles não é mais pobre que o seu”

Essa música só pode ser entoada a plenos pulmões hoje porque dez anos atrás, quando alunos chamaram seus colegas negros de “macaco favelado”, ninguém fez nada. Hoje, enquanto alunos e ex-alunos enchem as páginas das redes com relatos de humilhações, em algum lugar do mercado de trabalho os autores e cantores dos CD’s de 2005 repousam e, mais que isso, ocupam postos em renomados escritórios de advocacia, viraram promotores. São hoje juízes que decidem em tribunais pelo país questões sérias com base na mentalidade de que negros, com seu “cheiro forte de sovaco”, não merecem acesso à Justiça, só precisam “tomar um trocadinho”.

As vozes jovens e confiantes que ouvimos nas músicas da década passada entraram na corrente sanguínea do país. Muitas questões me ocorrem, como saber quem dirigia estas atléticas à época, e se ainda pensam da mesma forma. Teriam eles hoje vergonha do que fizeram?

Considerando que estudavam nos locais mais renomados, não estariam eles hoje nos postos mais altos da República? Segundo dados oficiais, a Justiça Federal, o Conselho Superior e os tribunais superiores são povoados imensamente por alunos de universidades públicas. A música Eterno Perde e Ganha faz questão de deixar claro quem deve estar no topo da montanha.

“A vida é um eterno perde e ganha/ alguns que só perde/ alguns que só apanha

(…) nós somos maioria no Supremo /e no provão do MEC o conceito A eu tenho

Do lado de cá apresento o Fundão/ Do lado de lá um bando de cuzão

No fim do torneio eu vou ganhar/ Pois é

E depois vou pra night/ pra pegar mulher”

Em pleno 2018, o esporte ainda funciona como álcool na ferida aberta e gasolina na fogueira altíssima das tensões raciais que nunca foram admitidas por uma parcela da população que insiste em nos jogar no batido “somos todos humanos”, negando a existência do racismo e fechando os olhos convenientemente para o fato de que, a julgar pelas estatísticas, uns são mais humanos que outros. E que cotas sempre existiram… para eles.

“Eu fui perguntar pra ela, meu amor, se na UERJ o Mandela é o reitor

E olha que ele bota o quê? Um pardinho

E olha que ele bota o quê? Um pardinho, inteligente

E olha que ele bota o quê? Um pardinho, inteligente ou burrinho

Pode ser um pantera, um analfa de favela

Isso pouco interessa, tem que ser um pardinho

UERJ é uma favela”

As escolas de Direito da UERJ, PUC e UFRJ são das maiores e mais prestigiadas da nação. Por estas instituições passaram ministros, juízes, procuradores, advogados renomados, magistrados entre os mais brilhantes da história brasileira. Em pouco mais de uma década da política de cotas, esta ação afirmativa mostrou o óbvio: o rei está nu.

Nosso cancro foi exposto sem piedade por uma elite forjada pelo sentimento de superioridade que, inclusive, a deixa confortável para usufruir do bem público como privado, conforme a letra de mais um sucesso das atléticas, Samba rock da Nacional.

“Ê vamos nessa

nada de pagar a mensalidade

é bom à beça (2x)

Vamos aprender ô ô

qual é a melhor condução

Central do Brasil

ô ô não vou dar mole pra pivete não…”

A parcela da sociedade brasileira que não se conforma em perder nada e que não quer compreender que política de cotas é apenas uma pequena contribuição para reparar o gigante mal causado pela escravidão. Essa mesma elite precisa negar o sucesso dessa política.

Qual o papel da educação universitária além de formar especialistas nas matérias que lecionam? Onde estavam (e onde estão) os reitores, mestres e doutores que não viram os monstros sentados à sua frente dez anos atrás? Afinal, o show de atrocidades não se restringia, obviamente, ao racismo, mas se estendia pela família macabra formada por machismo, homofobia e apologia à violência sexual. A letra de “Resposta do Rabugento” é clara: ela fala da relação entre o mascote da UFRJ e a naja, mascote da UERJ. E naturaliza um estupro.

“A naja faz assim

pra apertar o meu piru

Sou da UFRJ e o rabugento come cu

Vai pra night de bobeira?

Não, não, vou te estuprar

Tá ficando arrombada (4x)…”

Muito pouco tempo separa a música Carro Velho dos Jogos Universitários de 2018. No entanto, o fenômeno das redes sociais cresceu o suficiente para não deixar sem enorme repercussão o que era tido como “brincadeira” em 2005. Coletivos, grêmios e grupos organizados, que antes já reclamavam sem serem ouvidos, hoje agem rapidamente para não deixar passar. Nada. O nível de tolerância com o racismo diminuiu a quase zero por parte de uma juventude que está consciente de que “quem tem o conhecimento tem o poder” e não está disposta a ficar de fora dele. E aí reside o meu alento.

É preciso gritar contra isso e exigir consequências práticas nas vidas desses alunos racistas. Por causa desses gritos a organização dos jogos retirou o título de campeão geral da competição e suspendeu a participação da PUC da próxima edição.  Será que só isso já terá o mínimo impacto nas vidas deles?

As lágrimas que derramei quando ouvi as músicas tinham um misto de raiva, engulho e tristeza. Um gosto amargo. A tristeza que me assalta é pela nossa tragédia maior: o racismo é o nosso mais fundo e difícil abismo a ser vencido. Como disse profeticamente o abolicionista Joaquim Nabuco: “A influência da escravidão não desenraiza em um dia”. Pelo visto, meu caro Nabuco, nem em um século e meio.

 

Por Eliana Alves Cruz

Fonte: The Intercept Brasil