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O “distritão” arruinará os partidos

17 de agosto de 2017
O sistema, tecnicamente conhecido como voto único não transferível, é extremamente nocivo ao sistema partidário, base da democracia

[Este é o blog do Brasil Debate em CartaCapital. Aqui você acessa o site]

A Comissão da Reforma Política da Câmara dos Deputados decidiu que a partir das eleições de 2018 o novo sistema eleitoral para deputados federais, estaduais e vereadores será o “distritão”, e não mais o sistema proporcional. Esse sistema, tecnicamente conhecido como voto único não transferível, é extremamente nocivo à afirmação dos partidos políticos e, portanto, do sistema partidário, conforme avaliam inúmeras instituições de pesquisas e especialistas em todo o mundo.

Embora a decisão final da matéria seja levada ao plenário de 513 deputados federais, a direita parlamentar logrou, até o momento, submeter a proposta de emenda constitucional (PEC) do distritão à votação definitiva na Casa. As forças de esquerda e demais progressistas, dentro e fora do Congresso Nacional, que compreendem a importância dos partidos, tentam impedir mais essa derrota.

Após a criminalização da política, implementada pelo sensacionalismo liberal-midiático da Operação Lava Jato, a direita quer avançar em sua obra destrutiva da democracia marginalizando o protagonismo dos partidos no sistema representativo, substituindo-o pelo personalismo puro e simples. Democracia para as forças do golpe é uma palavra vazia, uma farsa retórica a serviço da desigualdade.

O distritão baseia-se em uma disputa personalista de candidatos, a partir da qual os deputados mais votados são eleitos sem contar com nenhuma transferência de votos dos partidos e coligações, que passarão a ser, em caso de sua aprovação, meras pessoas jurídicas necessárias apenas para a inscrição dos políticos nas eleições.

Pelo sistema proporcional atual, em vigor desde as eleições gerais de 1945, os partidos ocupam as cadeiras legislativas em disputa conforme a proporção dos votos adquiridos por suas legendas. Com o distritão, esse método democrático, surgido no século XIX para superar a exclusão operada pelo sistema majoritário e incorporar ao sistema político das democracias europeias em fase de construção os novos partidos populares, acabará.

No caso das eleições da bancada de deputados federais do Rio de Janeiro, por exemplo, composta por 46 cadeiras, os candidatos mais votados vencerão as eleições, independentemente de qualquer proporcionalidade da representação de seus partidos. Um partido com pouquíssima ou praticamente nenhuma organicidade, uma mera organização criada para, oportunisticamente, participar da política como empreendedorismo, por assim dizer, poderá oferecer sua legenda para uma celebridade televisiva obter votos do eleitorado sensível ao sensacionalismo midiático, na esperança de elegê-lo.

Essa artimanha já existe hoje, mas será exponenciada com o sistema de voto único não transferível. Esse sistema dificulta a formação de quadros políticos, ao tornar a competição eleitoral uma corrida de cavalos ou uma São Silvestre.

Segundo o jornal El País, o distritão existe apenas em quatro países, sendo dois amplamente desconhecidos e os outros dois, o Afeganistão e a Jordânia, que não têm nenhuma tradição em democracia representativa.

De acordo com o IDEA (International Institute for Democracy and Electoral Assistance – Instituto Internacional para a Democracia e a Assistência Eleitoral), apenas 1,7% dos potenciais candidatos participaram das eleições de 2010 no Afeganistão, “um claro indicador do papel extremamente marginal que os partidos políticos desempenham” naquele país. Ou seja, esse indicador revela que o novo único não transferível desestimula a participação política e a oligarquiza, ao favorecer candidatos com mais recursos financeiros e/ou de imagem.

Ademais, o distritão vai implicar um desperdício muito maior de votos. Todos os votos dados nos candidatos não eleitos serão desperdiçados, ao passo que hoje o desperdício é bem menor, uma vez que votos dados em candidatos que não logram vitória são transferidos para contar na proporção de votos obtida pelas legendas partidárias.

Como o voto proporcional é matéria constitucional, a aprovação do distritão depende de emenda à Carta Magna de 1988 (cujos conteúdos referentes ao pacto social vêm sendo jogados no lixo e, a depender das forças políticas e sociais que sustentam o governo do golpe, serão ainda mais, com a almejada contrarreforma da previdência). O quórum para emenda constitucional é de três quintos, 308 votos em quatro votações, duas em cada Casa do Congresso Nacional, o que dificulta um pouco os planos dos destruidores da política democrática.

O próprio líder do governo, deputado André Moura (PSC-SE) admitiu que não há, no momento, base garantida para essa vitória. Por outro lado, há uma significativa oposição pluripartidária ao distritão, reunindo PT, PCdoB, PSOL, PHS, PR, PRB, PSD, PDT e alguns parlamentares do PSB e da Rede, que soma mais de 200 deputados, número que seria suficiente para impedir a liquidação do sistema proporcional.

Por mais que haja no projeto da reforma política uma perspectiva de que, nas eleições de 2022, passaria a vigorar o sistema distrital misto, proposta menos nociva ao sistema partidário e que até possui pontos positivos, o mais importante é derrotar a aprovação do distritão, que deverá ir à votação em plenário ainda nessa semana. O distrital misto é uma mera promessa, o distritão, o pesadelo atual.

Abrir as portas de vez para o personalismo praticamente apartidário na política brasileira é inaceitável. Democracia depende de partidos políticos fortes, cuja ausência no Brasil explica muito dos males que produziram a atual crise de legitimidade do sistema representativo.

* É cientista político, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF), realizou estágio de pós-doutorado na Universidade de Oxford e estuda as relações entre política e economia.

Fonte: Carta Capital
Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil