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Entrevista ao Valor Econômico | Guilherme Boulos propõe taxar ricos para ampliar investimento público

22 de julho de 2018
Boulos: “Grandes medidas têm que passar por plebiscito e referendos. A sociedade precisa ser um poder de pressão” | Foto por Ana Paula Paiva/Valor

Mais jovem pré-candidato à Presidência, com 36 anos, e o primeiro a anunciar aliança e vice, Guilherme Boulos (Psol) propõe um pacote tributário para os mais ricos. Entre as medidas, estão a criação do imposto sobre fortunas, aumento da taxação de heranças, uma nova alíquota de Imposto de Renda para pessoas físicas e retomar a cobrança de tributo sobre dividendos. O presidenciável promete ainda reduzir as desonerações, que classifica como “Bolsa Empresário”. Com as medidas, sua equipe estima um aumento de arrecadação equivalente a 2% do PIB.

A nova receita deve ser direcionada para um “plano emergencial” de obras e financiamento de programas sociais. Essa é sua ideia para o país voltar a crescer e, assim, superar a crise fiscal.

Se eleito, promete que sua primeira ação será apresentar um plebiscito para revogar medidas do governo Michel Temer, como o teto de gastos, a reforma trabalhista e o marco regulatório do pré-sal.

À frente do programa econômico está uma nova geração de economistas, como Laura Carvalho (USP), Pedro Rossi (Unicamp) e Marco Antônio Rocha (Unicamp), que o acompanhou na entrevista ao Valor.

Líder do MTST, com 17 anos de militância no movimento dos sem-teto, Boulos tem como vice a liderança indígena Sônia Guajajara (PSOL). A dupla tem o apoio do PCB. O presidenciável, que fala em inaugurar um ciclo que “resgate a esperança”, é visto como herdeiro político de Luiz Inácio Lula da Silva e defende a candidatura do petista à Presidência.

Valor: O que a tragédia com a Marielle Franco mudou na sua campanha?

Boulos: A tragédia de Marielle foi um alerta para a democracia, não apenas para a nossa campanha. Reforçou a importância de se fazer a luta pela democracia para enfrentar o grau de violência política que cresce no Brasil. Reforçou também a importância de termos novas representações na política. Marielle não era uma vereadora do Rio e ponto. Era uma mulher, negra, que veio da favela e ocupou um espaço na política que normalmente é fechado para quem vem de onde ela veio. Nas alianças que construímos se fortaleceram as candidaturas de mulheres negras, sobretudo para o Legislativo, para renovar o Parlamento e representar o que a Marielle representou.

Valor: Bolsonaro disse que se eleito colocará o MTST na ilegalidade. Quando o senhor fala em ameaça à democracia se refere a isso?

Boulos: Estou me referindo a um conjunto. Ele já chamou o MTST de terrorista. Quero saber qual o grau de credibilidade que ele tem para acusar alguém de terrorista, já que foi expulso do Exército porque queria colocar bomba em quartel. Bolsonaro explora politicamente o medo e o sentimento de insegurança. Com intolerância e ódio, se converte em ameaça democrática.

Valor: Bolsonaro, como o senhor, tem grande apelo com a juventude. O que acha de parte da juventude defender a “ordem”, o “Bolsomito”?

Boulos: Está diretamente ligado à descrença na política. O sistema faliu, sem capacidade de coesionar a sociedade, o que gerou essa crise de representação sem precedente. O nível de descrença nas instituições é enorme, sobretudo na juventude. Compreendo o jovem que diz: ‘esse sistema não me representa’. De fato não representa. O sistema é sequestrado por oligarquias e interesses corporativos. Bolsonaro ganha espaço com um discurso de que vai botar ordem na casa, se apresenta de maneira farsesca, impostora, como um novo. Ele é deputado há 30 anos e aprovou só dois projetos. Não se sustenta quando abrir o debate.

Valor: Corre o risco de não ter o debate, com a campanha tão curta?

Boulos: Não é à toa que Bolsonaro tem fugido. Ele padece de inconsistência estrutural, não junta lé com cré. A campanha curta, com 45 dias, favorece quem tem poder econômico e quem já está no sistema. Mas quando as pessoas começarem a discutir eleições, um pouco da fumaça desce. As pessoas vão querer saber de propostas. Desconheço propostas dele, a não ser o populismo em cima de cadáver.

Valor: O senhor tem dito que tem sete milhões de imóveis vagos no Brasil e seis milhões de sem-teto. Não é um raciocínio que pode levar a uma solução simplista?

Boulos: Os imóveis vagos não são a única política para resolver o problema da moradia. É um gargalo que deve ser complementado por outras políticas. Segundo o IBGE, temos 7,9 milhões de imóveis vagos, boa parte em situação de abandono. Destiná-los para moradia popular seria correto em vários sentidos. Primeiro, porque cumpre a legislação, que tem sido descumprida há 17 anos, do Estatuto das Cidades. Segundo, porque falamos de direito à cidade.

Valor: O senhor diz isso em relação à qualidade de vida e a melhora na oferta dos serviços?

Boulos: Historicamente, a política de moradia no Brasil jogou os mais pobres nas periferias, onde não tem infraestrutura, nem serviços públicos e se demora duas horas para ir e voltar ao serviço porque a concentração da oferta de empregos está nas regiões centrais. Se fizer um movimento de desapropriar e requalificar imóveis ociosos nas regiões centrais, se enfrenta a segregação e resolve problemas como infraestrutura, serviço e mobilidade urbana. Esse foi um dos problemas das políticas habitacionais, como o Minha Casa, Minha Vida, que não pensaram as cidades. O programa se tornou linha de financiamento imobiliário.

“Tem que regular operação inter-bancária diante do cartel do câmbio. A volatilidade vira plataforma fácil de agiotagem”

Valor: O tema mais recorrente na economia é a questão fiscal. O que o senhor propõe?

Boulos: Primeiro, quero dizer o que não proporia. A política mais desastrosa para se lidar com o déficit fiscal é a que está sendo feita pelo Temer. Quando se lida com o problema fiscal cortando investimentos públicos, o efeito na economia é recessivo. O Estado deixa de fazer obras, de contratar, tem desemprego, redução da renda, do consumo e da arrecadação. Romperemos com essa política. Nenhum país saiu de crise sem investimento público. Faremos um plano emergencial de obras públicas, de investimento em infraestrutura, saneamento, moradia, saúde e educação. Fazer o Estado ser agente da recuperação econômica com distribuição de renda em um novo modelo de desenvolvimento.

Valor: E os recursos?

Boulos: Pelo menos três fontes de arrecadação permitirão um projeto de investimento público para tirar o país da crise. Primeiro, uma reforma tributária progressiva. Temos que voltar a tributar lucro e dividendo, que pode arrecadar cerca de R$ 60 bilhões ao ano, segundo tributaristas. Temos que taxar grandes fortunas, que está na Constituição e não foi regulamentado. Temos que aumentar a alíquota de imposto sobre grande herança. A alíquota máxima de herança no Brasil é de 8%. Nos Estados Unidos, insuspeitos de bolivarianismo, é de 40%. Temos que tributar mais renda e patrimônio para criar condições para a redução gradual da tributação sobre consumo e produção. Criar nova faixa do Imposto de Renda. A alíquota máxima de 27,5% está muito abaixo dos padrões internacionais. Nossa proposta é criar uma faixa de 35% de alíquota. Quem ganha mais do que R$ 1,3 milhão paga de alíquota de verdade 6,7%.

Valor: A tributação de patrimônio e a nova alíquota de IR dariam quanto a mais?

Boulos: 2% do PIB.

Rocha: Isso inclui a faixa superior do Imposto de Renda, lucro sobre dividendo, o imposto sobre grandes fortunas, sobre herança e inclui também a revisão do pacote de isenções.

Valor: Como seria esse imposto sobre grandes fortunas?

Rocha: Temos um plano geral de federalização desse imposto, além de cobrar o que já era previsto na época da Constituição e colocar o imposto em prática. Existem estudos sobre a alíquota razoável, de cerca de 8%.

Valor: Incidiria só sobre a passagem da fortuna?

Boulos: O imposto sobre grandes fortunas é uma forma de evitar uma malandragem para desviar do imposto sobre herança. Se só tem uma tributação mais elevada sobre herança o cara transfere o patrimônio antes de morrer para fugir do imposto.

Valor: Será pagamento anual?

Rocha: Estamos discutindo isso.

Boulos: Não achamos que a classe média deve pagar mais imposto. A proposta é tributar mais renda e patrimônio em detrimento da tributação essencial sobre consumo. O que gera distorção? É o fato de que quem ganha um salário mínimo ou dois paga mais imposto porque gasta toda a sua renda consumindo. Quem ganha R$ 100 mil por mês nem tem como consumir tudo. A maior parte do rendimento vai para aplicação ou poupança que é subtributada. O consumo super tributado faz com que proporcionalmente quem tem menos pague mais. Há pontos importantes para além da reforma tributária.

Valor: Quais?

Boulos: Temos as desonerações. O nível no Brasil, do Bolsa Empresário, é intolerável. Chegou a 4% do PIB. Não vamos acabar com todas as desonerações. Tem o Simples, as que permitem para o pequeno, médio empresário a geração de empregos. Mas o grosso das desonerações não foi feito com critério de desenvolvimento econômico e geração de emprego e sim com negociata de bancada. A lógica das desonerações não nos agrada.

Valor: Qual é a terceira fonte de arrecadação possível?

Boulos: O sistema financeiro e os juros da dívida pública, que precisa ser reestruturada. É uma dívida de curto prazo, com juros que não se sustentam e não se justificam. Houve lenta redução de juros nominal, mas teve também queda da inflação drástica e o juro real não se reduziu de maneira tão significativa quanto o nominal. Defendemos a redução dos juros e regulação do fluxo de capitais, para termos menos gasto com a rolagem da dívida e ficarmos menos vulneráveis às especulações cambiais.

Valor: Como impor a regulação e como seria essa reestruturação?

Rocha: Regular o fluxo de capital via IOF e outros mecanismos. Precisamos reestruturar a dívida no seu custo e na sua maturidade. Para isso precisamos impor algum tipo de regulação. Precisa também regular os mecanismos de remuneração e liquidez, como as operações compromissadas. Se impusermos uma regulação sobre as operações de curto prazo de liquidez que são remuneradas e sobre todos os fluxos de capitais externos, conseguiremos impor um custo de dívida menor e um alongamento do perfil da dívida.

Valor: A reestruturação da dívida seria gradual ou de uma vez?

Rocha: Ao longo do tempo. Isso já vem sendo feito. Há mecanismos de remuneração. Está se alongando o perfil da dívida e tendo a migração das operações compromissadas. O que precisa fazer? É fechar esses canais para ter poder de barganha em um processo de rolagem da dívida, garantindo um perfil de maturidade.

Boulos: Tem que regular operação inter-bancária diante do cartel do câmbio. A volatilidade vira plataforma de acumulação fácil de agiotagem. Além da tributação, precisamos acabar com a farra da porta giratória. O Ilan Goldfajn é um exemplo disso ao sair do Itaú e virar presidente do Banco Central. O Meirelles fez o mesmo quando deixou o BankBoston. Também saiu da presidência do conselho de administração da JBS para ser ministro da Fazenda.

“Defendemos o direito de Lula poder ser candidato. Ninguém pode nos acusar de agir em causa própria”

Valor: Caso eleito, qual será sua primeira medida?

Boulos: Apresentar um plebiscito revogatório de atos do governo Temer, como a reforma trabalhista, a Emenda Constitucional 95 e a entrega do pré-sal com o marco regulatório que aprovaram. Essas medidas não foram dialogadas e em dois anos fizeram o Brasil andar décadas para trás.

Valor: Como ter governabilidade com uma bancada pequena?

Boulos: A governabilidade foi entendida nos últimos 30 anos como ter maioria no Congresso. A relação entre Executivo e Legislativo deve ser democrática. O Brasil é maior do que a Praça dos Três Poderes. Nem tudo se resolve entre o presidente da República e o presidente do Congresso. A sociedade deve estar no centro.

Valor: De que maneira?

Boulos: As grandes medidas têm que passar por plebiscito e referendos. A sociedade precisa ser um poder democrático e legítimo de pressão. Nenhuma instituição abre mão de seus privilégios voluntariamente. Sempre há pressão social. A ditadura militar acabou porque milhares de pessoas foram às ruas. Um governo que dialogue com a sociedade pode trabalhar para pressionar as instituições. Para sermos coerentes contra a corrupção não faremos relação promíscua e fisiológica. No nosso governo o MDB será oposição.

Valor: Até que ponto a sombra da candidatura Lula não impede a ascensão de um líder de esquerda?

Boulos: As lideranças se formam pela capacidade de diálogo com a sociedade e de impulsionar projetos que despertem esperança. Lula é uma grande liderança social e política. Merece respeito. Defendemos o seu direito de ser candidato. Ninguém pode nos acusar de fazer isso em causa própria.

Valor: Sem a candidatura do Lula, acredita que será o herdeiro natural desses votos?

Boulos: Não quero naturalizar o que considero absurdo. Não vou tratar com naturalidade cenários sobre o que pode acontecer caso ocorra uma flagrante injustiça que consolide o impedimento de Lula.

Valor: Sua candidatura não depende mais da estratégia do PT?

Boulos: Não nos determinamos por cálculo eleitoral, mas sim pelo que acreditamos. Nossa relação de solidariedade com Lula e defesa de sua candidatura é uma posição de princípios e defesa da democracia. Nossa candidatura não está em função de outra. Defendemos um projeto de mudança, que inaugure um ciclo e resgate a esperança.

Valor: Sem o Lula, conforme as pesquisas, parte do eleitorado dele se divide entre Bolsonaro e a esquerda. Onde a esquerda falhou ao perder esses votos?

Boulos: Para a esquerda ser alternativa à crise de representação e não ser vista como parte dela, precisa agir diferente. Não pode ser mais do mesmo. Nossa candidatura é a única que diz que esse sistema político faliu. Quem diz que o único jeito de governar é com o tomá-la-dá-cá não pode abrir a boca para reclamar que a juventude vai votar no Bolsonaro. O que já está dando errado há tanto tempo não cabe nem mais conserto.

Valor: O senhor concorda com a necessidade de uma reforma da Previdência? O que propõe?

Boulos: O sistema previdenciário é de solidariedade geracional. Ter um sistema auto-sustentado é raro, sobretudo quando a pirâmide etária leva a um envelhecimento. Tem que ter formas de financiamento público da Seguridade Social e da Previdência. A Constituição prevê essas formas, com PIS, Cofins, Pasep, CSLL. Só que tem sido direcionada para outros gastos, com a DRU. A Previdência deve ser vista também como investimento.

Valor: Como?

Boulos: A crise no Brasil só não é maior porque existe Previdência. A renda de vários municípios depende da aposentadoria das pessoas. Mas sua arrecadação também depende do crescimento. Quando se destrói a economia e tem uma política recessiva se agrava o problema. Além disso, a reforma trabalhista gerou uma horda de empregos informais, que não arrecadam para a Previdência. Não se resolve o problema atacando direitos.

Valor: Não se vê a esquerda assumindo como bandeira a crítica à pensão das viúvas e filhos de militares. Falta ênfase?

Boulos: Isso são privilégios. Há distorção na Previdência dos militares e nas cúpulas dos Poderes. Isso extrapola a Previdência. Estamos falando do absurdo que é juízes, desembargadores, procuradores receberem acima do teto constitucional. Quando se fala na Previdência, temos também que cobrar a dívida de grandes empresas. Dois terços é resgatável e executável, em torno de R$ 300 bilhões.

Rocha: O debate sobre a reforma tem que ser feito após a recuperação da economia, porque no curto prazo não resolve o problema fiscal. Devemos preservar direitos. A Previdência é fundamental para dinâmica econômica de cidades e complemento de renda para famílias.

Valor: Dá a impressão de que há um dinheirão disponível de empresas devedoras, mas ninguém pega, o governo deixa, a Receita deixa…

Boulos: Há vários mecanismos de perdão, sem contar no absurdo que é ter seis instâncias para cobrar dívida tributária. Tem três instâncias internas da Receita, em que se pode recorrer. É decisão política, de lobby, inclusive no controle de instituições que deveriam cobrar e fiscalizar. Uma forma eficaz de enfrentar a sonegação é tributar, sobretudo, renda e patrimônio.

Valor: Com o Fundo Eleitoral, o PSOL terá recursos para a campanha como nunca antes?

O financiamento privado de campanha não acabou. Não pode mais pelo CNPJ, mas pode pelo CPF. O Itaú não pode mais, mas o dono pode. Com 10% da renda do cara você financia uma campanha presidencial. Há distorção absurda. Temos R$ 21 milhões para campanha presidencial, 27 governadores, 54 senadores, centenas de deputados federais e estaduais. Compara com o MDB [que terá R$ 234 milhões]. O financiamento público precisa ser equitativo. Teremos também financiamento coletivo pela internet.

Valor: Tarso Genro disse que irá apoiá-lo se Lula não disputar. Há um movimento do PT nessa linha?

Boulos: Tarso disse que o candidato dele é Lula. Caso ele não seja, defenderá no PT o apoio a nossa candidatura. É uma honra.

Valor: O MTST terá candidato na eleição proporcional?

Em alguns Estados. Não foi uma política deliberada. Tem Pernambuco, Roraima. O MTST nunca teve atuação consistente na política institucional e eleitoral. Minha candidatura é uma mudança, provocada também pela realidade brasileira. Não dá para ficar falando só de moradia num país que está dissolvendo, uma democracia sendo destroçada, perdendo direitos sociais.

 

 

Por Cristiane Agostine, Ricardo Mendonça, Fernando Taquari e César Felício

Fonte: Valor Econômico