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Governo publica decretos que regulamentam a Lei da Grilagem

31 de março de 2018

Medidas de Temer abrem as portas para a regularização fundiária de terras griladas e jogam pá de cal sobre a política de reforma agrária

Na prática, cede-se terras ao capital privado nacional e internacional | Nelson Feitosa/Ascom Ibama/PA

Em 15 de março de 2018 foram publicados os decretos 9.309; 9.310 e 9.311, que regulamentam a Lei 13.465/2017, por sua vez derivada da Medida Provisória 759, de 22 de dez/2016, conhecida como a MP da Grilagem – sobre a qual já discutimos em artigo anterior.

A lei derivada da MP expressa o projeto do atual governo em relação ao ordenamento territorial do País, enquanto os três decretos autorizam os órgãos públicos a por a mão na massa para executá-lo.

A publicação da MP 759 no apagar das luzes de 2016 obteve grande repercussão nos fóruns dos movimentos sociais do campo e da cidade, pois o governo alterava sumariamente leis e políticas construídas a custo de suor, saliva e até mesmo sangue de lideranças populares da cidade, do campo, das florestas e das águas.

Seis meses depois, a medida foi transformada em lei pelo Congresso Nacional e sancionada pelo presidente da República. O primeiro e o terceiro decretos (9.309 e 9.311) dispõem sobre a regularização fundiária rural e o segundo (9.310) sobre a regularização fundiária urbana.

Tratamos neste breve artigo dos assuntos relativos ao rural. Sobre essa matéria não é exagero afirmar que em pouco mais de um ano de tramitação burocrática, as medidas abrem as portas para a regularização fundiária de terras griladas em todo o país e jogam a pá de cal sobre a política de reforma agrária.

O Decreto 9.309 autoriza a ampliação das ações de regularização das terras, por meio da extensão do Programa Terra Legal. Criado em 2009, pela 11.952/2009, o programa era inicialmente circunscrito à região da Amazônia Legal e para a realidade de proprietários com apenas um imóvel, com terras ocupadas até 2004 e área de até 1500 hectares.

Com a ampliação promovida pela nova lei e pelo novo decreto, o programa é estendido a ocupações fora da Amazônia Legal nas áreas rurais do Incra e da União sob a gestão do Incra e a áreas remanescentes de projetos com características de colonização criados até outubro de 1985.

Passam a ser regularizadas ocupações anteriores a 2008, com área de até 2,5 mil hectares e de proprietários com mais de um imóvel. Para fins de comprovação de ocupação da terra até mesmo o desmatamento é aceito.

O decreto 9.311, por sua vez, se volta à reforma agrária, mais especificamente ao processo de seleção, permanência e titulação das famílias beneficiárias do Programa Nacional de Reforma Agrária. Ele desonera o Incra das obrigações para com as famílias assentadas, por meio de alterações nas leis n. 8.629/1993 (Lei da Reforma Agrária) e n. 13.001/2014 (que trata dos créditos para assentados).

Isto é, oficializa o entendimento de que não cabe ao governo estruturar as áreas destinadas à reforma agrária por meio da oferta de infraestrutura física e de políticas de crédito e assistência técnica. Como nos anos 1990, caberá aos entes federais competentes a responsabilidade de prover os serviços.

Outra alteração significativa diz respeito aos critérios de seleção das famílias. Até então, os assentamentos eram criados para atender as demandas das famílias e acampados, muitos dos quais se organizavam em movimentos de luta pela terra (as entidades representativas legitimadas pelo Estado), como o MST, a Contag e outros.

A partir de agora, haverá editais municipais de seleção das famílias que demandam lotes em assentamentos da reforma agrária, nos quais as famílias acampadas não terão preferência, ainda que possam receber pontuação por esta condição no edital.

Não é difícil constatar que esta medida visa a enfraquecer os movimentos sociais do campo e terá como consequência a submissão das populações rurais a pressões ainda maiores das oligarquias agrárias locais, adversárias históricas da política de reforma agrária.

Outra alteração que merece destaque tem a ver com a liberação da celebração de contratos de integração nos assentamentos. A proibição das atividades em regime de integração visa a preservar a busca pela autonomia produtiva dos agricultores, de maneira que eles não se tornem trabalhadores terceirizados de grandes empresas do sistema agroalimentar.

Com o decreto, mais esse entendimento se vê deturpado.

Das mudanças mais drásticas e repercutidas da MP 759, agora regulamentadas pelo decreto, tem a ver com a titularização dos lotes da reforma agrária. Medida essa que visa a ampliar – e aquecer – o mercado de terras.

Estimuladas e avaliadas por meio de um titulômetro, as superintendências estaduais do Incra e o órgão como um todo parecem se preocupar somente com a emissão de títulos de posse, sejam temporários ou definitivos. Tanto é assim que, em 2017, foram 123 mil títulos emitidos, ao passo que a média dos anos de 2003 a 2016 era em torno de 20 mil títulos/ano.

Para melhor dimensionamento da questão, lembramos que ao titularizar os lotes dos assentamentos de reforma agrária, o Decreto 9.311 coloca mais de 80 milhões de hectares de terra à disposição do mercado imobiliário privado. Uma extensão territorial equivalente à do estado do Mato Grosso e da soma dos territórios da Espanha e da Alemanha juntos.

A titularização tem sido vendida pelo governo – e comprada por muitas/os assentadas/os – como um grande feito, pois em princípio os agricultores terão a posse de suas terras. Esse discurso tem, contudo, motivações muito perversas que logo serão sentidas por meio das flutuações do preço das terras, do sobreaquecimento de nosso mercado fundiário e das consequências gentrificadoras que levarão à expulsão das famílias assentadas – e agora tituladas – por força das pressões de grandes fazendeiros e de imobiliárias rurais.

Para concluir estes breves apontamentos, lembramos ainda que esse conjunto de alterações não se vê descolado dos interesses de abertura do mercado fundiário brasileiro a investidores estrangeiros, matéria em discussão no Congresso Nacional prioritariamente pelo Projeto de Lei 4.059/2012.

Assim como o petróleo e parte expressiva do patrimônio nacional, o governo cede ao capital privado nacional e internacional (se é que ainda é possível distinguir suas fronteiras) as terras que abrigam a produção agrícola, as riquezas minerais, a abundância hídrica (que é também energética) e, o mais importante, a vida do nosso povo, com toda a riqueza de patrimônio imaterial e cultural que possuímos.

 

Por Luiza Dulci, economista (UFMG), mestre em sociologia (UFRJ) e doutoranda em Ciências Sociais, Desenvolvimento e Agricultura (UFRRJ)

Fonte: Brasil em Debate