Documentário | “Marcha Cega quer mostrar o horror que é a repressão estatal”, diz cineasta
Documentário dirigido por Gabriel Di Giacomo aborda a violência policial no contexto das manifestações entre 2013 e 2017 em São Paulo
Imagens de uma marcha militar. Ao fundo o trecho do “Hino da Independência”: “Já raiou a liberdade no horizonte do Brasil. Brava gente brasileira, longe vá temor servil. Ou ficar a pátria livre ou morrer pelo Brasil”. O trecho do juramento dos policiais militares aparece escrito em branco sobre a tela preta: “estamos compromissados com a defesa da vida, da integridade física e da dignidade da pessoa humana”. Corta. O fotógrafo Sérgio Silva, que perdeu o olho esquerdo enquanto trabalhava na manifestação de 13 de junho de 2013, é o primeiro a começar a contar a sua história.
Depois dele, diversos outros personagens que sofreram algum tipo de violação em protestos nos últimos cinco anos passam a falar de suas dores e de suas marcas, nem sempre aparentes, mas todas profundas. “Não tem um que seja pior que o outro. Todos são muito tristes, porque são injustiças”, afirma o diretor de Marcha Cega, Gabriel Di Giacomo, em entrevista à Ponte Jornalismo.
O documentário produzido pela Salvatore Filmes traz um retrato bastante completo das violações contra participantes de manifestações ocorridas em São Paulo nos últimos anos, mostrando que a repressão estatal não apenas aumentou como se aprimorou. Exibido nesta semana no Festival Chico de Cinema, em Palmas, também participou da mostra competitiva da edição do prestigiado Festival CINE-PE, no Recife, e estreou no circuito comercial nesta quarta-feira (26/9), em 19 cidades do país.
Além de Sérgio Silva, que estampa o cartaz do filme, estão entre os casos abordados no filme o movimento secundarista – mobilizações que começaram em 2015 com a ocupação das escolas, que ficou conhecido como “Primavera Secundarista” -, o caso dos “18 do CCSP”, grupo detido antes da manifestação “Fora, Temer!” por causa da atuação de um infiltrado do Exército em 4 de setembro de 2016, que ainda lutam na justiça para serem inocentados, e as diversas vítimas de protestos contra a Copa do Mundo.
Na última segunda-feira (24/9), durante a pré-estreia, o fotógrafo Sérgio Silva, uma das inspirações para o título do longa, disse que assistir o documentário foi como reviver aqueles momentos. “Eu fiquei me contorcendo na cadeira em alguns momentos. Foi mais do que lembrar. Foi sentir de novo”, disse.
O militante Fabio Hideki, que participa do documentário, disse que gostou do resultado, mas estava indo embora com um sentimento de revolta. “Fiquei ofegante, visivelmente bravo em alguns momentos e eu continuo assim porque é um documentário que não tem um final feliz. Muito pelo contrário, a gente está numa situação horrível, essa é a real. Traz uma narrativa temporal bem coesa e que nos mostra um crescendo dessa perseguição e repressão”, avalia. Hideki foi detido de forma arbitrária em 2014 durante protesto contra a Copa do Mundo ocorrida naquele ano no Brasil.
O tenente-coronel reformado da PM Adilson Paes de Souza, um dos entrevistados, já havia visto parte do documentário antes da estreia, mas esperou para ver por completo no cinema. “É um filme muito importante de ser visto no momento atual e traz conteúdos fundamentais para o debate público”, disse. Ao lado do ex-secretário nacional de Segurança Pública, o sociólogo Luiz Eduardo Soares, traz a parte mais analítica e até oficial do filme. “Reprimir com violência uma manifestação é reprimir o estado democrático de direito, é colocar em risco a nossa democracia”, diz Adilson em determinada parte do documentário.
O cineasta Gabriel Di Giacomo conversou com a Ponte Jornalismo:
Ponte – O que te motivou a, em 2016, que foi quando o filme começou a ser pensado, tratar de violência policial em manifestações?
Gabriel Di Giacomo – Foi logo quando teve o golpe, o impeachment da presidente Dilma. Naquele período foram várias manifestações sequenciais e todas reprimidas com muita violência. Isso remontou para a gente tudo que aconteceu em 2013, 2014 e 2015 e passou a ficar claro que aquilo não era uma coisa acidental ou pontual. Começou a ficar evidente que existe uma política do Estado para reprimir manifestações e os movimentos sociais legítimos, criminalizar as pessoas. Aí pensamos: vamos recuperar todo o histórico da repressão, juntar tudo em um filme para conseguir dar esse panorama. Porque às vezes quando a gente vê um caso de repressão, vê na timeline do Facebook, lê alguma notícia, isso depois de um tempo passa, acaba esquecido. Quando a gente juntou tudo, conseguimos ter um retrato dessa violência perpetrada pelo Estado e a certeza de que ela não é acidental.
Ponte – Como foi a seleção dos personagens? Quais os critérios para decidir por essa ou aquela história?
Gabriel – Tinha muita história, muita gente que poderia ser ouvida. Teve gente que, por exemplo, não topou ou nem pode falar [há dois entrevistados do filme que tiveram a identidade preservada porque respondem ainda a crimes na justiça e tem situação bastante vulnerável]. Nós queríamos ter exemplos de casos de violência diferentes, em vários níveis. Ou seja, ter casos de violência física, outro de violência mais psicológica, um caso de perseguição, outra ainda que explicitasse que, a violência não acaba na repressão policial, mas continua no judiciário, envolvendo as pessoas em processos que não terminam ou mesmo nos quais o papel de vítima é invertido e a pessoa acaba culpada. Tentamos fazer uma coleção desse museu do horror que é a repressão estatal.
Ponte – O título “Marcha Cega” faz uma menção direta ao caso do fotógrafo Sérgio Silva que, afinal, ficou cego por causa de uma bala de borracha. Sérgio tem também grande importância no fio narrativo da história. Mas há uma outra camada de leitura possível, mais simbólica, sobre uma cegueira do próprio Estado e de quem o defende. Como chegou a esse título?
Gabriel – O caso do Sérgio é um dos casos mais icônicos e que teve e teve desdobramento. Ele não conseguiu provar que era vitima e, ainda por cima, foi culpabilizado pelo Estado. É um caso que rolou até 2017. Pensando como roteiro, deu pra pegar ele lá atrás e seguir com ele até 2017, quando terminamos as gravações. Além de ser um ícone de resistência, o Sérgio ajudava nessa estrutura narrativa. Com relação específica à questão do título, tem de fato essa referência de que a marcha cega é uma marcha que continua. A repressão continua, ninguém para muito para refletir sobre isso, não se discute segurança pública como deveria, o governo não tem interesse em discutir, a policia militar, enquanto corporação, não tem interesse em discutir segurança publica com a sociedade civil, melhorar as praticas. Então, o que estou dizendo para você, é que é uma marcha que vai acontecendo sem controle, vai seguindo sem reflexão.
Ponte – Você dedica parte do documentário para discutir a desmilitarização. Inclusive, é perceptível o que você pensa sobre o tema, que é a favor. Por que abordar o tema?
Gabriel – Como eu disse, o Estado não permite que a sociedade participe de debates sobre a polícia. A gente, que no final das contas é a parte mais interessada, fica de fora dessa discussão. Por mais que existam pesquisas, estudos que apontem que grande parte dos policiais, cerca de 70%, é a favor da desmilitarização, parece que é proibido debater esse assunto. Há um grande interesse em se manter essa estrutura perversa na segurança pública porque ela atende a interesses de determinadas classes sociais e do governo. Essa estrutura permite até um uso político da polícia, essa estrutura militar da polícia. Além disso, avalio que é importante as frentes mais progressistas assumirem protagonismo nessa discussão sobre segurança publica. Porque às vezes quando a gente vai conversar sobre polícia, quem é mais de esquerda, mais do campo progressista, manifestam uma certa ojeriza ao tema. “Ah, polícia é o inimigo”. Esse pensamento acaba jogando o debate para o lado mais conservador, que assume a dianteira da discussão. Por isso quis colocar de uma forma progressista essa discussão. Polícia vai ter, não tem outro jeito. Estamos em uma sociedade que foi pensada e estruturada dessa forma. Ou seja, não é reduzir a discussão para uma questão de acabar com a polícia. A gente precisa ter uma polícia melhor, então vamos pensar, juntos, caminhos para isso.
Ponte – Há críticas também ao papel da mídia, principalmente a imprensa hegemônica. Em que medida você acha que a imprensa tem tido um papel importante no recrudescimento dos discursos?
Gabriel – No Brasil, a grande mídia está a serviço de seus acionistas, de grandes políticos. Mesmo porque, muitas dessas corporações, desses grupos de comunicação, pertencem a políticos ou famílias de políticos. Isso faz com que a grande mídia esteja sempre comprometida ou com o governo ou com os acionistas. Está atrelada a um interesse financeiro. Diante disso, talvez essas pautas [de crítica ao aparato repressor do Estado]não sejam interessantes. Ela cumpre muito o interesse jornalistico que ela é obrigada a fazer. Por exemplo, em diversos casos de protestos, nunca vi um enfoque para a vítima, ou ainda um aprofundamento do caso, da discussão. Fica tudo muito na superfície.
Ponte – O depoimento da Micaela Cyrino, que apanhou dos policiais do Choque em uma manifestação na Paulista, é muito forte. O choro que ela segura é muito dolorido e provocou reação na plateia. Para você qual foi o testemunho mais difícil?
Gabriel – Eu acho que todos. O da Micaela realmente é muito forte, mas não consigo dizer qual foi mais. Todos foram muito tristes, porque todos são injustiças. Mas, de fato, o jeito que ela [Micaela] conta o fato de ela ter sido espancada por PMs justamente por ser negra, mostra mais uma perversidade do Estado. Em um Estado racista, a polícia vai ser racista também. Eu ficava muito triste, porque essa coisa do Estado perseguir o cidadão, a pessoa não tem o que fazer. Eu percebia que elas tinham sofrido uma injustiça e não tinham muito o que fazer. É uma sensação…
Ponte – …de impotência.
Gabriel – Isso. Elas foram vítimas, mas não vão ser restituídas, o Estado não vai assumir a culpa nunca, não vai mudar a maneira de agir. Isso é muito triste. O Estado não quis participar do documentário, isso prova que não estão abertos ao debate. Dá uma sensação de desesperança muito grande.
Ponte – Notei mesmo que fizeram questão de colocar que os convites para gravar foram recusados pelos diversos órgãos do governo de São Paulo. Por que fizeram questão de colocar isso?
Gabriel – A gente queria que o documentário fosse um debate. Até para não ficar uma coisa panfletária, militante. Por essa razão, tentamos trazer o lado do governo, da polícia, da Secretaria de Segurança Pública, só que ninguém quer falar. Ou não responde o convite, ou simplesmente fica enrolando e simplesmente não se pronunciam. E é assim no dia a dia, né? Quantas vezes você vê que tem uma nota no final da reportagem: “a SSP não quis se pronunciar”. É sempre assim, né?. Ou seja, não estão abertos para o debate. Por fim, procuramos representar essa visão do policial através do tenente-coronel Adilson, que é um policial reformado e já viveu a corporação, e do Luiz Eduardo Soares, que é um dos maiores especialistas em segurança pública no Brasil.
Por Maria Teresa Cruz
Fonte: Ponte Jornalismo