Com mais de 50 ocupações, Passo Fundo vive um dos maiores conflitos fundiários urbanos do RS
Fonte: Sul21
Por Marco Weissheimer
O município de Passo Fundo, cidade com cerca de 200 mil habitantes localizada no norte do Rio Grande do Sul, possui um lugar privilegiado para contemplar um cenário que representa bem as imensas desigualdades sociais que ainda marcam o país. Situado em uma região alta, o “Sétimo Céu” permite um olhar amplo sobre a parte urbana da cidade o que o tornou um ponto turístico deste pólo universitário e centro de referência em saúde para boa parte da região norte do Estado. Quem não limitar o olhar ao horizonte e mirar também para baixo verá uma das dezenas de ocupações que existem hoje na cidade. Do “Sétimo Céu” é possível ver tanto a Ocupação Pinheirinho quanto o residencial Abudhabi uma grande torre destinada a pessoas “únicas e sofisticadas”, como afirma o vídeo promocional do empreendimento.
O conforto de Abudhabi é, de fato, uma possibilidade para poucos. Passo Fundo tem hoje quase um quinto de sua população, algo entre 40 e 50 mil pessoas, vivendo em ocupações, diz Fernanda Pegorini, advogada da Ocupação Pinheirinho. Só a área conhecida como beira-trilho, em torno da ferrovia cujos serviços são explorados atualmente pela companhia América Latina Logística, possui mais de mil famílias. “A beira-trilho é uma área composta por várias ocupações com características diferentes. Ela é hoje o maior conflito fundiário urbanos do Rio Grande do Sul, talvez um dos maiores do Brasil. Ele não se limita a Passo Fundo, mas, aqui, ele atravessa a cidade. São várias ocupações que atravessam a cidade. Essas áreas são picotadas por ações judiciais”, diz a advogada. A Ocupação Pinheirinho é uma dessas áreas, abrigando hoje cerca de 150 famílias, o que representa cerca de 500 pessoas, sendo mais de 200 delas crianças.
Segundo o secretário municipal de Habitação, Paulo Caletti, a Prefeitura está realizando, juntamente com a Procuradoria Geral do Município, a atualização dos dados das ocupação e do número de famílias. “Enquanto isso não for concluído, não é possível precisar os números”, diz Caletti. Ainda segundo o secretário, a maior parte das ocupações está em área pública municipal e federal e a Secretaria de Habitação está cadastrando as famílias e procura incluí-las em programas habitacionais.
Quanto aos despejos, Caletti afirma que, por força legal, o Município tem que ingressar com ações reintegratórias de posse de suas áreas invadidas. Porém, garante, no curso do processo a Prefeitura tem pedido a suspensão das ações até que se tenha um local para reassentar as respectivas famílias. Segundo o secretário, o caso da reintegração em uma área próxima da Efrica, ocorrida recentemente, “é diferente da maioria dos casos porque lá havia chácaras ou casas de lazer, que inclusive poluíam o manancial de águas que abastece a cidade”.
“Prefeitura tolera ocupações porque não tem política habitacional”
Para a advogada Fernanda Pegorini, a Prefeitura vem tolerando as ocupações como uma forma de se eximir de implantar uma política habitacional no município. “A gente consegue fazer a Prefeitura se interessar pela questão no âmbito da reintegração de posse e no momento em que ela percebe que pode ter mais problemas do que já tem. A grande verdade é que as ocupações são toleradas pelo poder público municipal. A Prefeitura diz que não tem dinheiro, mas, no limite, é mais interessante para ela que as pessoas fiquem assim como estão e ela não se preocupe nem com políticas públicas habitacionais nem com a regularização fundiária das áreas onde essas famílias estão. Agora, quando acontece uma reintegração de posse, essas autoridades têm que se envolver de algum modo”.
Esse envolvimento pode ser só de “corpo presente”, como aconteceu meses atrás no despejo de cerca de 30 famílias que ocupavam uma área localizada, nos fundos da Efrica, um parque de exposições do município. Para a advogada, o que aconteceu neste caso é uma prova disso. “As famílias nem tiveram uma defesa concreta no processo porque o advogado simplesmente disse que não precisava fazer nada porque eles não teriam como tirá-las, o que não era uma verdade já que era da União, não suscetível de usucapião. O fato de eles estarem ali há mais de 20 anos não garantia tudo o que eles achavam que garantia. E não deu outra. Eles chegaram patrolando. As famílias saíram com a roupa do corpo. Trinta famílias tiveram tudo o que tinham destruído. E destruíram com o secretário da Habitação assistindo, dizendo que não podia fazer nada”.
A escolha para muitas famílias: ou pagar aluguel ou comer
Uma das características marcantes em praticamente todas as ocupações é a ausência do poder público municipal que, segundo a advogada Fernanda Pegorini, só costuma aparecer nas ocupações nos momentos traumáticos de reintegração de posse. Sandra Mara, moradora da ocupação Pinheirinho Toledo há mais de dois anos, fala sobre a realidade que estão enfrentando neste início de inverno: “Não está sendo fácil. Veio uma ordem de despejo pra nós e a nossa situação é precária. Não temos apoio nenhum da Prefeitura. Alguns dos que estão aqui trabalham, outros são recicladores. Nós recebemos um galpão de reciclagem para trabalhar, mas roubaram o motor da prensa e ficou tudo parado”.
A ocupação Bela Vista transformou-se em outra área de Passo Fundo que passou a abrigar famílias que não conseguiram mais pagar aluguel. “Há cerca de dois anos e meio, um grupo de moradores que pagava aluguel aqui na cidade se reuniu nesta área que não estava cumprindo com sua função social. Hoje temos 150 famílias morando aqui e 75 famílias numa outra ocupação aqui do lado. Ao todo, somos mais de 700 pessoas morando nestas duas áreas que estão com ordem de despejo. São todas famílias de baixa renda que, antes de virem pra cá não tinham nem o que comer”, conta o caminhoneiro Moisés da Cruz Forgiarini, um dos residentes da Bela Vista. Ele destaca como a vida mudou para melhor para essas famílias depois da ocupação e manifesta preocupação com o futuro:
“Hoje a realidade é outra. Por não pagar aluguel, no fim do mês sobra um troquinho que dá para alimentar nossos filhos. Temos problemas mas conseguimos ter uma vida digna aqui. A gente não consegue dormir direito pensando no que pode acontecer amanhã ou depois, com a ameaça de uma máquina vir aqui e destruir nossas casas e tudo o que adquirimos com o maior sacrifício. Estamos tentando fazer o que os nossos governantes não fazem, que é se preocupar com a habitação. Enquanto isso, doam áreas para grandes empresas como ocorre aqui na cidade”, protesta Moisés Forgiarini que criou, no Facebook, a página “João Passo Fundo” para divulgar o cotidiano e a luta das famílias da ocupação Bela Vista.
“O povo está vendo que, sem luta, não tem vitória”
Uma das principais lideranças da ocupação, Teresa Duarte destaca a importância das famílias começarem a se organizar pelo direito a uma moradia digna. “Mesmo que seja difícil, a gente está conseguindo unir o povo das ocupações. No início foi difícil, mas o povo está vendo que, se não tiver luta, não há vitória. Para a gente ter uma vitória, precisamos nos unir e lutar juntos. A moradia é um direito de todos nós e temos que lutar por ele. Ninguém quer invadir nada de ninguém, mas o povo não consegue mais pagar aluguel. Nós já somos 150 famílias, mas todo dia aparecem outras famílias querendo vir pra cá. Infelizmente não temos mais lugar para colocá-las aqui. As mães chegam aqui chorando com os filhos dizendo que se tiverem que pagar aluguel não tem como comprar comida para eles”.
Dona Teresa critica a administração do prefeito Luciano Azevedo (PSB) e lembra uma afirmação que o mesmo fez durante a última campanha eleitoral. “Estamos fazendo aqui o que o prefeito não está fazendo. Muita gente não prestou atenção no depoimento dele. Eu não esqueço o que ele disse: ‘Eu não vou apoiar as ocupação’. É o que ele está fazendo. Não está apoiando as ocupação mesmo. Se ele não quer apoiar, que faça moradia para as pessoas. Chega uma hora que [a situação] é tão desesperadora que as pessoas se obrigam a fazer isso”. Morando há 16 anos em uma ocupação, Teresa admite que, em certos momentos, bate um cansaço e dá vontade de largar tudo:
“Não é fácil. Tem horas em que tu tem vontade de jogar tudo pro alto. Eu mesma já pensei em fazer isso, mas chegava em casa e pensava o que ia ser daquelas famílias se elas não tiverem ninguém ajudando. O que vai ser delas se as máquinas vierem derrubar a casa delas. Como vai ficar a minha consciência? É por isso que digo para o povo que é preciso lutar. Sem luta não se consegue nada. Se tu ficar em casa sentado, tomando chimarrão, não vai conseguir nada. Deus ajuda, mas se a gente não se ajudar e não fizer a nossa parte, não adianta”.
“Quando que eu pude assar um pedaço de carne num domingo?”
Mãe de oito filhos, Lindamar Soares está morando na ocupação com três filhas e duas netas. Ela salienta que não tem mais como pagar aluguel e que só na ocupação está conseguindo ter uma vida digna. “Somos sete pessoas morando na nossa casa. Uns dormem no chão, outros dormem numa cama, pois a casa é pequena por enquanto. Pretendemos aumentar a casa. Só sairemos daqui se o prefeito der uma casa pra gente morar. Sou papeleira há 18 anos na cidade de Passo Fundo e não tenho para onde ir com meus filhos. Pagava mais de R$ 600 de aluguel, mais água e luz, não sobrava dinheiro pra comer. Agora estou tendo uma vida digna. Quando que eu pude assar um pedaço de carne num domingo? Nunca. Hoje, graças a Deus, estou tendo esse direito.
Lindamar acrescenta que a busca por uma moradia na família já dura mais de quatro décadas. “Há 45 anos, a minha mãe inscreveu a gente num cadastro da Prefeitura para ganhar uma casa. Até hoje não ganhamos e ela segue morando em ocupação. Eu já estou com 48 anos e também já me inscrevi. As autoridades tem que tomar uma decisão. Ou nos dão um lugar digno para morar ou nos deixam aqui”.
A poucos metros da Bela Vista, a ocupação Vista Alegre repete o mesmo cenário e as mesmas narrativas acerca de uma escolha que acaba sendo traumática individual e socialmente: ou se paga o aluguel ou se come. “O pessoal não tem para onde ir. O aluguel está muito caro. Como é que o cidadão vai pagar R$ 800 de aluguel?”, questiona José Morais, morador da ocupação. Além do problema de falta da moradia, os moradores ainda enfrentam o problema do preconceito, relata: “Tem gente que diz por aí que estas invasões são feitas por um bando de vagabundos. Não é assim. Aqui é todo mundo trabalhador. Podem chegar aqui e conferir. Não tem ninguém parado, só os aposentados, idosos e algumas pessoas com deficiência que ficam em casa. A nossa vida é humilde, mas não queremos nada de graça. Queremos uma moradia que a gente possa pagar.”
No momento em que José Morais falava sobre a situação dos moradores, uma nova família chegava à ocupação no final da manhã de um domingo trazida pela mesma justificativa: a imposição da escolha entre pagar aluguel e ter dinheiro para comer durante o mês.
Nova ameaça de despejo
Na última sexta-feira (29), as famílias das ocupações Bela Vista e Vista Alegre tiveram uma má notícia. A oficial de justiça Sandra Regina Adam encaminhou correspondência ao juiz da 3a. Vara Cível de Passo Fundo solicitando o encaminhamento de medidas para a execução da reintegração de posse. Na nota, a oficial de justiça pede que a RGE e a Corsan (Companhia Riograndense de Saneamento) sejam notificadas “para que forneçam os meios necessários para a reintegração”. Além disso, pede que seja informada a “área exata com mapa e medição do terreno a ser desocupado, bem como fornecer maquinários e pessoal para demolição de casas/casebres, se necessário”.
Os moradores das duas ocupações se reuniram neste sábado (1o.) e fizeram um cordão humano na área para demonstrar união e disposição de lutar pela garantia da moradia. Por meio de sua página no Facebook, também fizeram um apelo ao prefeito Luciano Azevedo e aos vereadores do município para que a ação de despejo seja suspensa.