Brasil tem recorde de assassinatos no campo em 2017 e só dois casos são esclarecidos
A cada seis dias, um ativista que lutava por terra ou defesa do meio ambiente foi assassinado, em média, no Brasil, em 2017. No total, foram 57 vítimas, segundo dados divulgados nesta terça-feira pela organização internacional Global Witness. É o maior número já registrado pela organização, que anualmente pesquisa mais de 20 países. Em todo o mundo, foram 207 vítimas em 2017.
Em anos anteriores, os números brasileiros foram menores: 29 vítimas em 2014, 50 em 2015 e 49 em 2016. São, sobretudo, mortes em locais onde há conflitos pela posse da terra.
A maior parte dos casos continua em investigação e ainda não foi esclarecida, segundo levantamento da BBC News Brasil junto a Tribunais de Justiça, Ministérios Públicos e Polícias Civil e Federal.
A exceção são os dois principais crimes no campo ocorridos em 2017: as chacinas de Pau D’Arco (PA), em maio, e Colniza (MT), em abril, consideradas as piores do Brasil nos últimos vinte anos.
No caso do massacre de Pau D’Arco (PA), com dez vítimas, 17 policiais militares e civis foram denunciados. A maioria deles foi presa em julho de 2017 – e solta em junho passado pelo Supremo Tribunal de Justiça. Já na chacina de Colniza (MT), que teve nove vítimas, cinco pessoas foram denunciadas – parte delas está foragida.
Em ambos os casos, porém, não há previsão para julgamento.
Mortes em conflitos pela posse da terra e na Amazônia
O critério da Global Witness para considerar uma pessoa como ativista é se ela atuava de forma pacífica para proteger o direito a terra ou o meio ambiente.
Entram nessa categoria, por exemplo, sem-terra, pequenos posseiros e trabalhadores rurais ameaçados por madeireiros, grileiros (que ocupam terras públicas ilegalmente) ou proprietários rurais que contratam grupos armados.
“Esses ativistas defendem direitos humanos reconhecidos internacionalmente, como o direito a um meio ambiente saudável, de participar na vida pública, de protestar e o direito à vida. Assim, eles são um subconjunto dos defensores de direitos humanos, que os governos são obrigados a proteger, conforme previsto em declaração das Nações Unidas”, afirma a Global Witness.
No Brasil, os casos estão concentrados na Amazônia. Em 2017, de cada 10 homicídios registrados pela Global Witness, oito ocorreram na Amazônia Legal (que engloba a região Norte, Mato Grosso, Piauí e parte do Maranhão). Essa é, justamente, a área do Brasil com mais áreas sem regularização fundiária e em disputa.
Não se tratam, porém, de mortes na floresta, mas sim em zonas desmatadas nas bordas da Amazônia, onde há interesse econômico. Principalmente, em Rondônia e no leste do Pará.
Falta de ação do Estado e impunidade
“Há três razões para esse recorde do Brasil. Em primeiro lugar, nenhum governo brasileiro jamais mostrou vontade política para enfrentar interesses econômicos e priorizar a proteção dos ativistas”, diz Ben Leather, da Global Witness.
“Em segundo lugar, anos de impunidade fazem com que aqueles que buscam silenciar os ativistas acreditem que podem fazê-lo sem nenhuma consequência”, continua Leather.
Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), instituição ligada à Igreja Católica que acompanha os conflitos no campo, apenas 5% dos casos ocorridos no Brasil desde 1985 foram a julgamento. “Esse clima de impunidade favorece a desfaçatez com que se mata”, concorda Ruben Siqueira, da coordenação nacional da CPT.
“Por último, as instituições que poderiam enfrentar as causas desse conflito – como o Incra e a Funai – tem sido enfraquecidos pelo governo”, completa Leather.
O Ministério da Segurança Pública não respondeu aos questionamentos da BBC News Brasil.
Como está o andamento dos crimes?
A BBC News Brasil reuniu informações sobre o andamento de 42 das 57 mortes apontadas pela Global Witness. Com exceção das 19 vítimas nas chacinas de Pau D’Arco e de Colniza, os demais casos continuam em fase de investigação policial, sem que executores e/ou mandantes tenham sido denunciados pelo Ministério Público.
Um dos primeiros casos de 2017 ocorreu em 1º de fevereiro, quando Roberto Santos Araújo, liderança de um acampamento sem-terra em Ariquemes (RO), foi morto a tiros. Duas semanas depois, foi assassinada outra liderança do mesmo acampamento, Elivelton Castelo Nascimento – no ano anterior, ele havia testemunhado contra policiais acusados de terem assassinado sem-terra.
Passados mais 17 dias, ocorreram outras duas mortes de sem-terra em Rondônia. Uma das vítimas foi Renato Souza Benevides, também em Ariquemes – um ano antes, ele havia escapado de uma tentativa de homicídio. A outra foi Oreste Rodrigues de Castro, em uma cidade próxima. Os quatro casos continuam em investigação e sem esclarecimento.
A chacina de Colniza (MT) veio a seguir, em 19 de abril, em um local isolado no meio da floresta amazônica, há 1,1 mil quilômetros da capital do Estado e acessível por estrada de chão.
De acordo com a denúncia oferecida pelo Ministério Público do Mato Grosso, a mando de um madeireiro, quatro pessoas invadiram um assentamento e mataram nove pessoas a tiros e golpes de facão. Parte das vítimas foi degolada. Ainda segundo a denúncia, a motivação do crime seria extrair recursos naturais das terras do assentamento. Os acusados negam as denúncias.
Nesse momento, a fase de produção de provas da chacina de Colniza está chegando ao fim. Depois disso, as partes irão apresentar suas alegações finais e, então, o juiz vai decidir se o caso vai a julgamento pelo tribunal do júri.
Já em 24 de maio, foi a vez da chacina de Pau D’Arco. As mortes ocorreram durante uma operação policial para dar cumprimento a mandados de prisão. A primeira versão do caso foi que os policiais reagiram a um suposto confronto armado com as vítimas. No entanto, nenhum policial ou viatura foi atingido por algum disparo.
Por solicitação do Ministério da Justiça, a Polícia Federal foi chamada para investigar a chacina. Durante as investigações, a PF realizou a maior reconstituição de um crime já feita no país. Além disso, policiais civis fizeram delação premiada, o que ajudou a desvendar qual foi a participação de cada acusado.
As provas reunidas apontam que as vítimas foram executadas – com tiros no peito ou na cabeça, muitas delas deitadas ou ajoelhadas. Os acusados, que negam terem cometido os crimes, ficaram presos preventivamente durante a maior parte da investigação. Mas, em junho, uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça determinou que fossem soltos para aguardarem o fim do processo em liberdade.
Agora, o processo está em fase de alegações finais da defesa. Em seguida, a Justiça vai determinar se o caso vai a júri. Além disso, a PF está realizando uma segunda fase das investigações, visando descobrir se houve oferta de vantagens para execução dos crimes – em outras palavras, se há mandantes.
Casal de idosos assassinado
Já no segundo semestre de 2017, em 25 de julho, o casal Manoel Índio Arruda, de 82 anos, e Maria da Lurdes Fernandes Silva, de 60 anos, foi assassinado a tiros no assentamento onde vivia, em Itupiranga (PA). São as vítimas de conflitos no campo mais velhas.
Segundo a Comissão Pastoral da Terra, Índio vinha requerendo providências de autoridades sobre a acumulação de lotes em torno de suas terras. O delegado da Polícia Civil responsável pelo início da apuração do caso, Alexandre Silva, esclarece que as investigações apontaram que o mandante seria justamente a pessoa que estava visando a concentração fundiária. Mas ainda não há informação sobre quem seriam os executores. As investigações continuam.
A seguir, em 6 de agosto, seis pessoas foram mortas na comunidade quilombola de Iúna, em Lençóis (BA). Há suspeitas de que a motivação do crime não tenha sido um conflito agrário. A Comissão Pastoral da Terra, no entanto, discorda dessa interpretação. O caso segue em investigação.
Em 13 de setembro, os sem-terra Jorge Matias da Silva e Eraldo Moreira Luz foram assassinados a tiros em um acampamento em Marabá (Pará).
Cinco dias depois, em Simões Filho (BA), Flávio Gabriel Pacífico dos Santos, defensor de comunidades quilombolas no Estado, foi assassinado com dez tiros. Ele já estava ameaçado de morte. Em 14 de outubro, João Ferreira dos Santos, antigo militante do Movimento Sem Terra (MST), foi assassinado em Itamaraju (BA).
Os casos de Silva, Luz, Pacífico dos Santos e Ferreira dos Santos continuam em investigação.
Já no final do ano, em 14 de dezembro, três sem-terra desapareceram em Canutama (AM), onde lideravam uma ocupação: Flávio Lima de Souza, Marinalva Silva de Souza e Jairo Feitosa Pereira. Os três estavam ameaçados de morte. Durante dez dias, foram feitas buscas pelas vítimas, sem sucesso.
As informações sobre o desaparecimento de Canutama são desencontradas. Enquanto a Polícia Civil informou que o caso está encerrado e que os indiciados estão desaparecidos, o Ministério Público Federal e a Polícia Federal disseram que a investigação segue em curso.
Os homicídios estão caindo?
Ainda não há números consolidados de 2018. Mas, dados iniciais da Global Witness obtidos pela BBC News Brasil apontam para uma queda expressiva. Autoridades e ativistas também confirmaram a sensação de que o número de crimes começou a cair este ano.
“A impressão é que, esse ano, o número de casos diminuiu. Pode ser um reflexo do destaque que alguns casos do ano passado ganharam na mídia. Queremos crer que esteja ocorrendo um refluxo da sensação de impunidade”, declara Ruben Siqueira, da CPT.
Sem dúvida, o caso de maior repercussão foi o de Pau D’Arco, com a investigação realizada pela PF e mais de uma dúzia de policiais denunciados e presos preventivamente – a prisão preventiva é decretada apenas antes do julgamento, como instrumento do processo.
“Para a média dos crimes no Brasil, tivemos um avanço significativo e rápido”, avalia José Vargas Júnior, advogado das vítimas ou sobreviventes de Pau D’Arco.
“Rapidamente, desmantelamos a versão de que as mortes teriam ocorrido em um confronto com a polícia, conseguimos a federalização da investigação, os laudos foram conclusivos e não deixaram dúvidas de que as pessoas foram assassinadas quando já estavam rendidas. Para a quantidade de réus e a complexidade do crime, foi algo recorde”, conclui.
Julgamento rápido e com condenações altas é ‘divisor de águas’
Além de Pau D’Arco, outro caso chamou a atenção em 2017: em outubro, o tribunal do júri condenou quatro pessoas pela morte de Alysson Henrique de Sá Lopes, de 23 anos, integrante de um grupo sem-terra.
Em janeiro de 2016, Alysson e outros quatro sem-terra foram emboscados por um grupo armado em Cujumin (RO). Três escaparam. O quarto, Ruan Lucas Hildebrandt de Aguiar, 18 anos, nunca foi encontrado. Já o corpo de Alysson foi achado carbonizado em um carro.
Um cabo e um sargento da PM (este último também denunciado pela chacina de Colniza) foram condenados a 30 anos de prisão. O gerente da fazenda que estava ocupada pelos sem-terra, a mais de 28 anos de prisão.
Além disso, o presidente de uma associação rural da região, que teria sido responsável por indicar os demais acusados para fazerem a segurança da propriedade, foi condenado a mais de 8 anos de prisão. Já o dono da fazenda foi inocentado. Todos alegam que são inocentes. Tanto a defesa quando o MP pediram a realização de um novo júri.
“Esse julgamento foi um divisor de águas. Foi muito emblemático e acabou tendo um efeito muito grande na região, porque muitas pessoas que acreditavam em impunidade viram que não é por aí, os crimes terão consequências muito pesadas”, afirma o promotor do caso, Anderson Batista de Oliveira. Depois disso, diz Oliveira, o número de homicídios na região caiu – Rondônia era, junto com o Pará, a região com mais conflitos no campo no Brasil.
“Julgamentos representam passos extremamente importantes e esperamos que tenham um efeito de dissuasão em outros potenciais criminosos. Porém, com centenas de outros casos sem solução, nós instamos o governo e o judiciário brasileiros a intensificarem os esforços. A federalização de mortes emblemáticas de ativistas, cujos casos não estejam progredindo no nível local, podem ajudar a acelerar esses esforços”, conclui Ben Leather, da Global Witness.
Por Amanda Rossi
Fonte: BBC News