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Relato e Registros de um dia emocionante | Domingo na Ocupação Marielle Franco

26 de março de 2018

Domingo, 25 de março de 2018. Sexto dia da Ocupação Marielle Franco, no prédio abandonado do antigo Hotel Nassau, na Praça da Independência, endereço que sugere algo que não se encontra no dia a dia das 200 famílias que lutam diariamente por um teto.

Chego tranquila ao local, por volta das 10h35. Na portaria do edifício, Bença – um jovem ocupante da Ocupação Carolina de Jesus (terreno no Barro, ocupado pelo MTST em 2017) e que segue ocupando o prédio em apoio às famílias – me recebe já comentando: “pensei que a senhora não vinha mais. Me avisaram que a senhora chegaria às 10h30”.

Com sorriso no rosto, ele avisa aos outros que fazem a guarda do portão: “essa aqui tá desde segunda acompanhando nossa luta”. Havia conversado muito com Bença na noite da ocupação, enquanto as horas não passavam e a ansiedade e o medo apertavam os corações de todos.

Cadeados abertos, ele arrasta o portão de ferro que se mantém sobre os cuidados dos homens que dão apoio à ocupação Marielle. Com a recepção do prédio já sem lixo e entulhos acumulados, três rapazes arrumam o piso desgastado pelo tempo. Chão molhado e já sou avisada que hoje é dia de mutirão de limpeza. A escada, que desde a madrugada de segunda me deu a sensação de claustofobia, dessa vez estava praticamente vazia. Apenas algumas mulheres indo e vindo com vassouras e panos. Dois lances e o cansaço de quem está acostumada ao elevador me levam à cozinha comunitária.

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A cozinha é comunitária e todas as refeições são preparadas em um único fogão. Foto: Inês Campelo/MZ Conteúdo

O cheiro de feijão, vindo do único fogão usado para preparar as refeições de todos, incensa o andar. Três mulheres tomam conta da cozinha coletiva e me recebem mas não param a contagem de alguns alimentos doados. Tudo que é recebido é cuidadosamente contabilizado. A cozinha também abriga as demais doações. Alguns sacos com roupas também estavam sendo separados ali. Já recebo o recado: “precisamos de roupas de crianças, principalmente de bebês. Tem muita criança de colo aqui e as mães estão ficando aperreadas”, dispara uma das líderes. Sentada no chão, pergunto se eles estão recebendo doações. “Graças a Deus estamos sim”, toma a frente Lindinalva Maria, a Nalva da cozinha.

Pergunto sobre como é cozinhar para tanta gente em um único fogão. “Hoje, a gente começou a fazer o almoço às 6h, porque tem que ser uma panela por vez, mas o arroz, o macarrão e a carne já estão prontos”, aponta Nalva para a bancada improvisada com os depósitos cheios. Aliás, improvisar é uma questão de sobrevivência. “Para organizar melhor, as crianças e os idosos recebem a comida primeiro. E as pessoas seguem as regras aqui, porque tem que ser assim, né”, complementa. Percebi já no início da subida que as regras de convivência estão coladas nas velhas portas de vidro de entrada.

A essa altura, Bença já chega para me guiar pelos demais andares. No andar da cozinha só há mais um cômodo ocupado por duas famílias. O espaço equivale à área de um quarto mediano, uns 3 metros de largura por uns 4. Duas camas feitas de pedaços de madeira ocupam o local, uma com dois colchões de solteiro juntos, onde domem um casal e uma filha. A outra apenas uma tábua forrada com um cobertor surrado.

Rapidamente pergunto se alguém dorme ali e o rapaz da porta responde: “essa é minha cama, dona. Durmo eu, minha mulher e o menino”. Não havia sequer uma espuma fina.

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Cada cama é o espaço reservado para uma família. Foto: Inês Campelo/MZ Conteúdo

O andar já estava “um brinco”, como nos referimos popularmente a um ambiente organizado. Todas as “camas” forradas, sem lixo pelo chão. Sigo para o próximo. “A senhora vai na frente, porque numa ocupação liderada por mulheres os homens ajudam apenas na proteção”, explica Bença. O G3 estava com poucas famílias. Muita gente aproveitou o domingo para visitar parentes.

No canto direito do andar uma roda de dominó. “É pra passar o tempo”, diz um dos participantes. O clima é familiar. As pessoas riem, conversam e jogam. Ao lado da roda, duas crianças assistem a uma pequena TV de 14 polegadas, com volume baixo e uma imagem que sequer consegui identificar o desenho. Não há brinquedos. Não vi sequer uma bola daquelas de borracha fina rolando pelo ambiente.

Sigo para o lado esquerdo do andar, formado por vãos abertos, no formato de um “L”, contornados por janelas de madeira entreabertas. O calor é grande, apesar das janelas estarem abertas. Em todos os andares elas também fazem a função de varal, de armário. Como já disse, tudo é improviso. Alguns ventiladores, a maioria sem tela de proteção e às vezes faltando uma das hélices, sopram esperança de dias melhores. Bem no cantinho, um casal deitado no colchão conversa como se ali existisse um milímetro de privacidade.

Ficam envergonhados com minha presença, mas ele pede para sair na foto. Mariana logo se apresenta. “Tia, meu nome é Mariana e eu tenho dois anos. Eu tenho um irmão bebê”. E posa para as fotos. Acredito que pelo menos 35 famílias ocupam esse andar. As contas não batiam muito, mas é muita gente vivendo sem dignidade e privacidade.

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Mariana, à direita da foto, é quem se apresenta e apresenta os amigos de ocupação. Foto: Inês Campelo/MZ Conteúdo

Mais um andar acima, e vejo uma jovem areando panelas, com duas bacias de água, acocorada no chão. Desde a chegada fui avisada que o prédio estava sem água hoje. “A bomba instalada não tem dado conta do serviço e é preciso fechar a água algumas horas do dia para que a caixa encha”, explica um dos líderes.

Ana Paula Teixeira viveu os últimos 10 anos na rua. Não tinha casa. As filhas moram com a mãe em Joana Bezerra, mas, por problemas com vizinhos, ela saiu de casa e teve a rua do Imperador como morada. Dividem com ela o quarto, o companheiro e um senhor com necessidades especiais.

 

No quarto ao lado encontro com Ana Maria Gomes. Na rua com as três filhas e o companheiro, ela viu naquele prédio a possibilidade de não mais dormir ao relento. Comendo uma banana com farinha de mandioca ela me convida para entrar.

Todos os andares têm banheiros. Divididos entre masculino e feminino, alguns contam até com plaquinhas indicando se estão ou não ocupados. Como o dia era de faxina e tinha faltado água, alguns estavam bem limpos, outros nem tanto. Alguns tinham box, ou local para banho, outros era no improviso.

Já bastante emocionada subo mais um andar. Neste último reencontro Clebiana Gomes. Na noite do dia 19 tinha conversado com ela rapidamente, ainda na concentração, e visto que seu esposo ajudava bastante na organização. Preocupada com a educação dos três filhos, ela juntou a família e ocupou o prédio. Sem emprego, sem bolsa-família, acredita que ali é um ambiente melhor para as crias terminarem de crescer.

A conversa com a família de Clebiana foi das mais fortes do domingo. No fim, nos emocionamos juntas e terminamos com um abraço apertado narrado por Bença: “é, essa história dela faz a gente chorar mesmo”.

Hora de descer pois já havia anúncio de que o almoço estava pronto. Quando chego na cozinha, Nalva já servia algumas crianças. Não é um refeitório, nem há mesas para comer. Cada um leva seu prato ou depósito e é servido pela líder. “Aqui cada um traz o seu. Não pode um descer e pegar pra dois não, tem que ser como o combinado”, explica Nalva quando uma criança anuncia que é pra duas pessoas.

 

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Quando as refeições estão prontas a prioridade é das crianças e idosos. Foto: Inês Campelo/MZ Conteúdo

Graças às doações o prato é farto. A quantidade do preparo Nalva diz já ter base. Trabalhou anos como empregada doméstica e já liderou a cozinha de outras ocupações. Ela está lá acompanhada pela filha de 18 anos e do companheiro. A outra filha ficou na Carolina de Jesus. O marido seguiu a vida e foi morar em Tamandaré. Nalva disse que não podia deixar as filhas para trás.

Espero Bença bater um bom prato enquanto converso um pouco mais com Nalva, que me explica as regras da cozinha e pede mais uma vez doações para as crianças. “Precisamos mesmo é de roupas, brinquedos e livros de historinhas”.

Desço para ir embora com Bença ao meu lado contando um pouco da sua vida.

“Eu sou da Carolina de Jesus. Eu vim pra cá e não saí desde segunda para ajudar as pessoas porque já tenho experiência em ocupações e porque as pessoas que estão liderando, do MTST, confiam em mim. Passei a noite toda no portão porque aqui tem muita mulher. A ocupação é das mulheres, mas nós, os homens, precisamos ajudar a proteger elas e fazer a ocupação dar certo”.

 Com toda gentileza do mundo, Bença me acompanha até o carro, agradece e pede que eu tenha cuidado.
Por Inês Campelo