“Batemos tambores, eles panelas”: Rincon Sapiência quer matar o senhor de engenho e ainda te fazer dançar
Fonte: El País
Por Gil Alessi
O escravo Galanga corria pela mata fechada com o coração explodindo na boca e os olhos arregalados, tentando detectar qualquer sinal dos capangas armados e capitães do mato que vinham no encalço do “negro fujão”. “Se me pegarem vai doer, querem minha cabeça na ponta da lança”, pensou, com as marcas da tortura recente ainda abertas no corpo. Minutos antes ele havia cometido um dos maiores crimes que um escravo podia cometer no Brasil Colônia: Galanga matou seu senhor de engenho e desencadeou uma rebelião na senzala. Com essa história, rimada na faixa Crime Bárbaro, o rapper Rincon Sapiência, 31, abre seu novo disco, Galanga Livre, lançado de forma independente pelo artista e pela produtora Boia Fria. “O fato de ele matar o senhor de engenho representa a quebra de uma estrutura que sempre jogou contra a gente né? É uma metáfora para um movimento de retomada dos pretos e pretas”, diz em entrevista concedida ao EL PAÍS.
Nascido na Cohab I em Itaquera, zona leste de São Paulo, Danilo Albert Ambrosio ganhou o apelido de Rincon em homenagem ao jogador colombiano Freddy Rincón, ídolo no Palmeiras e Corinthians nos anos de 1990. Cresceu ouvindo por tabela na casa dos pais clássicos da black music, como Michael Jackson, Marvin Gaye, e também Jorge Ben e Tim Maia. “É clichê dizer isso, mas os Racionais Mc’s foram o primeiro grupo que eu ouvi e pensei: ‘Que bagulho foda!’”, afirma. Anos antes de despontar no rap em 2011 com o single Elegância, o jovem Danilo distribuía panfletos no farol e pintava muros de vizinhos “em troca de 20 reais”, gastos imediatamente “com alguma bombeta [boné] ou CD na galeria [Galeria do Rock, no centro de São Paulo]”. Ele também despertou a ira de centenas de brasileiros: “Fiquei anos trabalhando com telemarketing”, explica. “O pior era o setor de retenção, que é quando o cliente não quer mais o serviço e você tem que dar um jeito de segurá-lo”, afirma. Se você tentou cancelar a assinatura de TV a cabo entre 2008 e 2010, é possível que o rapper de fala mansa tenha tentado convencê-lo a ficar.
Ao longo das 13 faixas do disco Rincon passeia por vários estilos musicais, como o funk, o samba e a ciranda – com participações especiais da lendária Lia de Itamaracá e de William Magalhães, fundador da Banda Black Rio que também fez a direção artística do álbum. Apesar de algumas músicas de forte teor político e social, sobra espaço para o romantismo e músicas de amor. “O cidadão normal namora, transa, se diverte, se frustra, ele vive uma gama variada de experiências de vida que o rap tem que representar”, afirma Rincon. Ele rebate as críticas de que o rap atualmente não é tão “revolucionário” quanto na década de 1990, quando Racionais MC’s, Sistema Negro, DMN e outros grupos se notabilizaram pelas pesadas críticas sociais de suas letras. “Durante muito tempo alguns colocavam o rap como um movimento que deve se posicionar de tal forma, falar só de coisas da rua ou reivindicar algum direito”, afirma. Para ele, nos últimos anos os MCs foram se “engendrando na música brasileira mesmo: a gente não deixa de ser rap, mas acabamos compondo no entretenimento cultural do brasileiro de forma mais ampla”.
“Quanto mais a gente inserir valores culturais nossos – pode ser o candomblé, a umbanda, capoeira, ciranda, funk, o arrocha, sertanejo – de uma forma bem dosada, todos esses temperos enriquecem a nossa música”, diz. O funk, que cresceu a ponto de destronar o rap nas periferias do Brasil, também serve de inspiração para Rincon, e é “um dos caminhos pra gente popularizar ainda mais a música rap”. “O funk é uma cultura na qual você tem o MC, tem o DJ, tem a coisa do faça você mesmo, levantar o capô do carro e rolar o som, ou ligar um sistema na comunidade e fazer um baile, tudo isso é hip-hop”, diz. O clipe da música Ponta de Lança, que conta com uma batida funk, teve mais de 5,6 milhões de visualizações no Youtube. “Batemos tambores e eles, panelas”, diz um dos versos da música com um suingue contagiante. “Não acho que porque o funk tem um apelo gigantesco que devemos nos aproximar dele, mas sim porque é uma linguagem rítmica, altamente percussiva que já está no inconsciente popular do brasileiro”, diz.
O continente africano e suas manifestações artísticas e culturais também tiveram grande influência no disco novo do rapper. Ele esteve no Senegal e na Mauritânia em 2013 para participar de festivais de música. “As pessoas se identificaram muito com meu trabalho lá, mesmo sem entender nada do que eu falava”, afirma. O berimbau, presente em uma das músicas do artista, chamou a atenção durante as apresentações. “Era a que mais chamava a atenção do publico, acho que essa brasilidade e autenticidade são muito importantes no meu trabalho”, diz. Lá ele conheceu estilos como o rock da Zâmbia, Nigéria e Mali. “Pra mim foi uma descoberta que havia um cenário rock no continente africano na década de 70”, diz. As recém adquiridas referências estão presentes no disco, assim como os tambores.
“Batemos tambores, eles panelas”
Rincon dedica algumas rimas às pessoas que batiam panelas na janela durante os pronunciamentos da então presidenta Dilma Rousseff na TV, mas que agora “fingem que nada aconteceu”. “Procurando pela paz de Aruanda, eu não vou bater panela na varanda, rua, nós vamos ocupar”, canta ele em Galanga Livre, faixa que dá nome ao disco. “Eram pessoas que aparentemente estavam mais preocupadas com a manutenção de seus privilégios”, afirma o rapper. “Agora fingem que nada aconteceu: as fotos que elas postaram com políticos, a camiseta da CBF que vestiram, o candidato que elas apoiaram, parece que nada aconteceu, todo mundo está apagando essas fotos das redes sociais”, brinca.
No início do ano Rincon fez uma apresentação na cracolândia, região central de São Paulo, a convite do coletivo Craco Resiste. “Ter ido até lá fazer música, pode ser um momento que dura pouco, mas você humaniza essas pessoas. Elas dançam, conversam, socializam, é uma experiência positiva”, afirma. O rapper dispara contra as políticas do prefeito de São Paulo João Doria: “O crack é um problema complexo, e é preciso ser tratado como problema de saúde pública. Está ocorrendo o inverso né? Estão lidando com os usuários com truculência, em uma lógica de dispersão forçada”. Para ele, a ação do prefeito “dispersou” a cracolândia para vários outros pontos, como a praça Princesa Isabel. “Agora é muito mais demanda pra você cuidar. Pior para a cidade”, diz.