Selfies em Auschwitz, Charlottesville e o avanço da banalidade do mal
Fonte: CartaCapital
Por Felipe Arrojo Poroger*
Como no caso do cartaz antissemita em hotel na Suíça, a disseminação do horror está relacionada a atos cotidianos
Recentemente, o hotel Aparthaus Paradies, nos Alpes Suiços, achou por bem fixar um cartaz na entrada de sua piscina: “A nossos clientes judeus, mulheres, homens e crianças, pedimos que tomem uma ducha antes de nadar. Caso não respeitem a norma, seremos obrigados a fechar a piscina para vocês”.
Não tardou, claro, para que o caso se tornasse um grave incidente diplomático. A vice-ministra das Relações Exteriores de Israel, Tzipi Hotovely, exigiu desculpas oficiais pelo “ato antissemita do pior tipo”. O ministério suíço das Relações Exteriores declarou que seu país “condena o racismo, o antissemitismo e qualquer discriminação”.
Nada, até aí, fora dos protocolos geopolíticos. Afinal, uma vez difundida a mensagem de ódio, era de se esperar a condenação pública, bem como a retratação nacional. Não raro – e com frequência assustadora -, casos de antissemitismo continuam assombrando o cenário internacional: seja no atentado em Charlottesville, na conivência de Trump que o acompanha, ou nas palavras do parlamentar polonês Bogdan Rzonca, que se questionou recentemente no Twitter “por que há tantos judeus que defendem o aborto apesar do Holocausto”, o ódio está vivo.
Se a lista de casos recentes de ameaça física ou psicológica à comunidade judaica (e a outras minorias sociais) é extensa, de que valeria olhar especialmente para o caso do Aparthaus Paradies, que, se comparado a outros, passou com certa timidez pelos noticiários? A resposta possível está nas palavras da gerente do estabelecimento, Ruth Thomann, que assumiu a autoria do alerta.
Questionada, declarou simplesmente perceber que alguns judeus não tomavam a ducha antes de nadar. “Como outros clientes pediram que fizesse algo, escrevi o cartaz, um pouco ingenuamente”, explicou. Motivada, portanto, por pessoas a quem deve obediência e esclarecimentos (os clientes), Thomann atenua a sua própria responsabilidade, atribuindo a um deslize (a sua ingenuidade) o novo regulamento da piscina.
Aos que estudam a filósofa alemã Hannah Arendt ou que nutrem simpatia intelectual por seu conceito de ‘banalidade do mal’, o caso do hotel suíço não poderia ser mais didático. Como se sabe, no livro “Eichmann em Jerusalém”, a autora acompanha o julgamento de Adolph Eichmann, um dos oficiais nazistas responsáveis pela logística de envio de milhões de judeus a campos de concentração.
Diante do tribunal, relata Arendt, Eichmann insistia que “tanto quanto podia ver, seus atos eram os de um cidadão respeitador da leis. Ele cumpria o seu dever; não só obedecia ordens, ele também obedecia à lei”.
Na afirmação de transferência da responsabilidade e culpa a terceiros (sejam estes oficiais superiores, Hitler ou, vá lá, clientes de um hotel), o conceito de ‘banalidade do mal’ choca por atribuir a disseminação do horror a atos cotidianos que, de naturais, não percebem a dimensão de suas consequências.
Assim fez a gerente: ao lado de um ‘obrigado pela compreensão’, Ruth Thomann assinou o cartaz. Tão banal quanto o mal que pressupõe, é saber que, quem concorda em colocar o seu nome sob um texto, não se envergonha de seu conteúdo ou nem ao menos consegue captar qualquer motivo para seu embaraço.
O que alerta do hotel Aparthaus Paradies parece trazer (ou retrazer) à tona é, então, o antissemitismo corriqueiro, desinteressado feito cartaz, sem alardes por achar-se óbvio, como o ódio que se traveste em norma e não se envergonha de sê-lo. Afinal, o que estaria fazendo de errado?
Talvez seja desonesto, a um primeiro momento, comparar a feitura de um cartaz antissemita à articulação da indústria nazista da morte. No entanto, como toda doença, também o ódio começa por apresentar seus sintomas sorrateiramente. O que começa como tosse, dor de cabeça ou gripe do dia-a-dia, aos poucos pode reverter-se no diagnóstico irreversível de metástase. E quem negligencia os sinais torna-se cúmplice das consequências.
Cabe, aqui, um relato pessoal: no último dezembro, em pleno inverno polonês, com os termômetros marcando -15ºC, visitei os campos de concentração de Auschwitz, onde, estima-se, morreram 1,3 milhão de pessoas, sendo 90% de origem judaica.
Para além do frio insuportável – que não estava nem aí para meu amontoado de casacos térmicos (aos quais os prisioneiros obviamente não tinham acesso); para além também das máquinas de extermínio que hoje são peças de museu e das duas toneladas de fios de cabelos achadas junto aos seus cadáveres, uma imagem parecia duelar com o horror da exposição: em frente a um vagão agora vazio, onde um dia transportaram-se judeus feito gado, um casal erguia um pau de selfie para registrar o passeio.
Diante desta imagem, nada mais pode ser dito. Quando o extermínio vira foto de viagem, quando o horror vira hashtag turística, ou quando, simplesmente, um cartaz antissemita de hotel suíço é mera cordialidade com outros hóspedes, os ecos distantes de um passado recente pouco a pouco tornam-se gritos. E os livros de história deixam de ser história para, mais uma vez, tornarem-se destino.
E nesse cenário, que não seja tarde para que que as palavras de Primo Levi, sobrevivente de Auschwitz, na introdução de seu “Se isto é um homem”, retomem sua atualidade e evoquem a memória de um tempo nefasto que, ao contrário do que se crê, nunca teve o seu fim:
“Pensem que isto aconteceu: eu lhes mando estas palavras. Gravem-na em seus corações, estando em casa, andando na rua, ao deitar, ao levantar; repitam-nas a seus filhos. Ou, senão, desmorone-se a sua casa, a doença os torne inválidos e os seus filhos virem o rosto para não vê-los”.
* Felipe Poroger é diretor do filme “Aqueles Anos em Dezembro” e responsável pelo Festival de Finos Filmes, mostra paulistana de curtas