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Legítima defesa, sim! Mas o que temos a comemorar?

18 de maio de 2018
Reprodução

Está nas redes sociais: na porta de uma escola infantil, um homem armado se aproxima e, brandindo sua pistola, anuncia o roubo contra uma das mães que aguardavam as crianças. Ele se aproxima agressivamente, ameaçadoramente, sem espaço a dúvidas de que poderia fazer uso da arma, caso não lhe fosse entregue uma bolsa, certamente com tudo dentro: “chave, documento, terço, patuá”, além de uns cartões de crédito e uns poucos reais.

Surgiu do nada, como nada surgem, uma ajuda, uma pronta intervenção de uma mulher, policial militar, que ali desempenhava seu papel materno, também ela aguardando seu rebento. Provavelmente, de forma instintiva, ela sacou da arma que trazia – legalmente – consigo e fez cessar a ação daquele jovem desgovernado.

Em sua intervenção, disparou três vezes contra ele, deitou-o ao chão, chutou para longe a arma que ele trazia e o imobilizou. No caminho para o PS, ele faleceu. As imagens são fortíssimas mas já se incorporaram a outras imagens fortíssimas dos jornais da noite.

No dia seguinte, o Governador em exercício chamou-a ao Palácio de Governo e a homenageou. Não a homenageou por ter defendido uma cidadã anônima, mas por ter matado o ladrão. Se o houvesse imobilizado tão-somente não teria direito ao rapapé que lhe fez a autoridade máxima do estado.

Não tenho dúvidas de que agiu, naquilo em que direito penal, chamamos de legítima defesa de terceiro, prevista pelo Código Penal e, seu art. 25, “Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”.

Não há dúvidas que, diante de uma arma de fogo, real e municiada, trazida para fim sabidamente ilegal, ocorre uma agressão, senão atual, certamente iminente, uma vez que qualquer acontecimento poderia a fazer com que o agressor disparasse. A questão que tem dividido as pessoas é a de saber se três disparos teriam sido inevitáveis e, pois, necessários, ou se, como heroína demasiadamente humana, teria a moça, saltado o muro baixo que separa a defesa do ataque.

Caso estivesse eu na acusação, não teria dúvidas em pedir aos jurados ou ao juiz que reconhecessem, sem nenhuma reserva, a legítima defesa, por vários motivos, dentre todos o fato de ter ela mais cartuchos que poderiam ter sido utilizados e não foram, bem como o fato de ser aceito, nos dias de hoje, que a tendência de quem é agredido é a de esgotar a capacidade do potencial vulnerante da arma de que dispõe para livrar-se da situação de perigo em que se encontra ou em que se encontra a terceira pessoa (como no caso).

É preciso que tenhamos presente que o perigo perdura enquanto perdurar para a vítima o medo de morrer.

É o medo de morrer que nos impele a reagir, a pulsão de vida que nos move contra a violência atual ou iminente que estamos a sofrer. Esse medo é irracional e não conta quantas balas, quantos golpes, quantos tiros – ele nos impulsiona a sair do perigo, a espantar o medo da morte. Por isso, o corpo não sente dor ou cansaço, apenas projeta para a mente a necessidade de fazer cessar a situação. Após cessada e dominado o medo de morrer, seja por qualquer razão, teremos, então, cessada também a agressão. Qualquer investida, a partir desse momento, é tão criminosa quanto a agressão primeira. Porém, enquanto perdurar o temor de morrer, por perigo ilícito a que não deu causa, a situação de legítima defesa ainda persiste.

Não podemos confundir pessoas com carimbos e nem podemos nos dar ao luxo de prever o passado. Na intensa situação, na dramática situação, ninguém pode ser algébrico, preciso, a ponto de saber carimbar qual é o momento em que, externamente, a agressão teria se findado, como se estivesse filmando ou narrando um gol de outro time, que não aquele em que estivesse jogando.

Não somos máquinas – bradou Charlie Chaplin, no magnífico O Último Ditador –, não podemos ser exigidos como se houvesse um botão mágico que nos acionasse a agir e depois nos devolvesse a um estado de repouso emocional.

“Quando me encontro no calor da luta
Ostento aguda a empunhadura à proa
E se a sentença se anuncia bruta
Mais do que depressa a mão cega executa
Pois que senão o coração perdoa.”

Não tenho, assim, dúvida alguma. Foi legítima defesa. O que me assombra é que a tragédia do crime, do qual resultou um jovem morto, jamais poderia ser comemorada. Ele era tão brasileiro quanto qualquer um de nós, pagava os mesmos escorchantes e injustos impostos indiretos, não tinha um gato para puxar pelo rabo e teve interrompida sua existência, porque tomou uma decisão estúpida. O que existe a ser comemorado?

Quando comemoramos a morte matada de alguém anônimo é porque nos esgarçamos e falimos enquanto sociedade: ele tinha mãe, que o enterrou e chorou em seu túmulo e um ou dois Zés que sentirão sua falta.

É o bastante para sentir essa náusea que sinto agora.

 

Por Roberto Tardelli, advogado e Procurador de Justiça aposentado

Fonte: Justificando / Carta Capital