Fim da participação cubana no Mais Médicos | Entenda o programa que levou atendimento a milhões e que foi jogado no lixo por Bolsonaro
Declarações falaciosas do presidente eleito forçaram governo cubano a anunciar o fim da sua participação no programa que atendeu milhões de pessoas, majoritariamente em municípios pequenos e periferias
Durante anos o atendimento médico oferecido pelo Sistema Único de Saúde, referência em saúde pública no mundo, falhou ao alcançar milhões de brasileiros e brasileiras. Apesar das tentativas de oferecer vagas e condições de trabalho favoráveis, via editais públicos, aos médicos brasileiros em regiões afastadas dos grandes centros urbanos, a categoria profissional historicamente negligenciou tal demanda — privilegiando as grandes cidades e o atendimento privado.
Para atender essas vagas não escolhidas pelos médicos brasileiros, a gestão da presidenta Dilma Rousseff criou, em julho de 2013, o programa Mais Médicos, que trouxe milhares de médicos do exterior, em sua maioria cubanos, que começaram a desembarcar por aqui desde agosto daquele ano. À época, o número de médicos por mil habitantes no Brasil era de 1,8 — abaixo de países como Venezuela (1,9), Inglaterra (2,7) e Alemanha (3,6).
O déficit, estimado em 54 mil profissionais, foi sanado com a iniciativa que, desde o seu início, sofreu forte oposição. Hoje, a saúde pública no Brasil depende e necessita dos trabalhos desses profissionais.
Um de seus maiores críticos, o presidente eleito Jair Bolsonaro vem há anos espalhando inverdades sobre as condições de trabalho oferecidas pelo programa, com argumentos falaciosos que comparavam médicos cubanos a trabalhadores escravizados; de que os profissionais convocados não possuíam qualificação adequada; e que chegavam a afirmar que tais pessoas eram obrigatoriamente afastadas de suas famílias.
Uma vez eleito, suas palavras — que colocam a ideologia antiesquerdista à frente da saúde da população brasileira — ressoaram de tal maneira que forçaram Cuba a acabar definitivamente com a iniciativa humanitária.
“O presidente eleito do Brasil, Jair Bolsonaro, com referências diretas, depreciativas e ameaçadoras à presença de nossos médicos, disse e reiterou que modificará os termos e condições do Programa Mais Médicos, desrespeitando a Organização Pan-Americana da Saúde e o que esta acordou com Cuba, ao questionar o preparo de nossos médicos e condicionar sua permanência no programa à revalidação do título e como única forma de se contratá-los a forma individual”, diz a nota oficial do governo de Cuba.
Mas, se não quisermos médicos cubanos no Brasil, precisamos escolher entre duas opções: não atender milhões de brasileiros e brasileiras ou aprender com Cuba e melhorar nossa saúde pública. Na ilha caribenha, a medicina não é uma profissão liberal. Não existem médicos trabalhando por conta própria, não há médicos abrindo clínicas privadas, não tem médico em hospital particular. Todo hospital cubano é 100% público, de graça e todos os profissionais de saúde são funcionários públicos.
Portanto, o Brasil nunca pagou “salário” aos médicos cubanos. O Brasil pagava, sim, uma espécie de mensalidade à Organização Pan-americana da Saúde — órgão transnacional que media a permanência dos médicos cubanos em solo brasileiro, para que aqui eles seguissem trabalhando. A OPAS recebia essa quantia do governo brasileiro, a repassava para uma empesa estatal cubana, da qual todos os médicos são funcionários, e daí uma parte desse total compunha o pagamento dos médicos, enquanto o restante virava imposto — sendo reinvestido em saúde e educação na ilha de Cuba.
Como a ajuda de médicos cubanos surgiu, no mundo, e no Brasil
– Os médicos cubanos atendem cerca de 66 países em programas similares ao Mais Médicos em todo o mundo;
– a iniciativa de enviar médicos ao exterior começou em 2005, com uma brigada para atender às vítimas do Furacão Katrina nos EUA, que mesmo sob a tragédia negou a ajuda humanitária;
– a brigada de médicos permaneceu mobilizada e, em pouco tempo, prestou atendimento em diversos países e diferentes episódios de catástrofes naturais;
– em agosto de 2013, profissionais cubanos vieram ao Brasil pelo programa Mais Médicos, criado para suprir a carência de médicos em municípios do interior e na periferia das grandes cidades;
– tais áreas são historicamente ignoradas pelos médicos brasileiros, mesmo com a abertura de inúmeros editais públicos que oferecem remuneração e condições de trabalho favoráveis.
Quem paga os médicos cubanos e como funciona o programa
– Para a maioria dos países com que faz parceria, que são pobres, Cuba envia médicos e medicamentos de graça;
– alguns países oferecem trocas pelos serviços dos médicos — a Venezuela, por exemplo, enviou petróleo. Já países com melhores condições financeiras, como os europeus e o próprio Brasil, pagavam dinheiro;
– o governo cubano criou uma empresa estatal para contratar tais médicos, via edital; todos os profissionais e países envolvidos conhecem as condições de trabalho/pagamento previamente, antes de o contrato ser assinado;
– a Organização Pan-Americana da Saúde sempre apoiou as ações do Mais Médicos. A OPAS é a agência internacional de saúde mais antiga do mundo, vinculada a Organização Mundial da Saúde (OMS), Organização dos Estados Americanos (OEA) e a ONU;
– o Brasil foi o único país no mundo a cobrar a revalidação de diplomas dos médicos cubanos;
– além de apresentar seus diplomas, eles foram avaliados por professores e preceptores de medicina brasileiros, em sua maioria de universidades federais, em questões de medicina e de fluência em português.
Condições de trabalho dos médicos cubanos no Brasil
– A responsável pelo salário dos cubanos é a própria empresa estatal cubana, que é quem recebe e gere a verba paga por outros países. Ela banca todos os direitos trabalhistas e dá assistência total em casos de lesão corporal, invalidez, seguro e pensão em caso de óbito;
– a maior parte dos recursos destinados ao programa, se dividido pelo número de médicos, fica com a estatal, que os reinveste, obrigatoriamente, na educação e saúde de Cuba — serviços sociais 100% gratuitos na ilha;
– os médicos e médicas cubanos possuem visto de permanência para suas famílias emitido pelo Ministério das Relações Exteriores: seus dependentes legais, além de seus companheiros ou companheiras, podem residir no Brasil durante todo o período de contrato;
– apenas uma profissional cubana desertou e se voltou contra o Mais Médicos desde o início do programa, em 2013. Ela comprovadamente recebeu dinheiro da Associação Médica Brasileira, se abrigou na sede do partido DEM, numa campanha declarada da entidade e da direita política contra os médicos cubanos;
– num universo de aproximadamente 14 mil profissionais, poucos médicos cubanos efetivamente desistiram do trabalho no Brasil.
Recepção e alcance na população brasileira
– Em pesquisa realizada pela UFMG com usuários do SUS em 699 municípios, mais de 80% disse que a qualidade do atendimento médico foi para “melhor ou muito melhor” com a chegada dos cubanos. Também disse que as consultas passaram a resolver melhor seus problemas de saúde;
– um dos pontos mais positivos apontados pelos usuários foi a presença constante do médico e o cumprimento total da carga horária — em detrimento dos médicos brasileiros, que protagonizaram diversos casos de fraude no ponto que registra o expediente;
– outros estudos sobre o Mais Médicos mostram que os pacientes atendidos relataram melhorias significativas no número de visitas domiciliares, no tempo de consulta e na preocupação manifestada por parte dos profissionais cubanos;
– a maior parte do atendimento médico hoje provido nas aldeias indígenas é de profissionais cubanos: 87%;
– entre 2.849 e 3.600 municípios foram ou são, atualmente, cobertos pela assistência dos médicos cubanos, atendendo cerca de 113 milhões de pacientes. A maioria, localidades com menos de 20 mil pessoas, que dependem totalmente desses profissionais.
Impacto a curto prazo do fim do programa Mais Médicos
– Com o fim da participação cubana no programa, 8.600 equipes médicas correm o risco de ficar sem profissionais. Isso representa um quinto da saúde da família no Brasil;
– somente no estado do Rio Grande do Sul, segundo levantamento do G1, cerca de 1,8 milhão de pessoas vai ficar sem atendimento;
– na prática, os grandes prejudicados com o fim do convênio são os brasileiros que dependem do SUS, os que vivem na periferia das grandes cidades e em áreas de difícil acesso, sofrendo há décadas sem assistência médica.
E agora, Jair Bolsonaro?
O que o novo presidente terá a dizer quando as pessoas descobrirem quem foi o responsável pelo posto de saúde não ter mais médico?