Logo do MTST
  • Instagram
  • Facebook
  • Twitter
  • Youtube
  • Tik Tok

Diante de Bolsonaro, movimentos sociais preparam a resistência

9 de novembro de 2018

Resistência se articula entre gestores de universidades, estudantes e até advogados empenhados em fazer do ofício uma barricada em defesa da democracia

A liderança do MTST, mas, sobretudo, a campanha à Presidência, elevou Guilherme Boulos a ícone da incipiente “resistência” | Reprodução/Facebook

“O gigante acordou!” A gente viu no que deu. “Não vai ter Copa!” Teve. “Não vai ter golpe!” Teve. “Fora Temer!” Temer ficou. “Mexeu com Lula, mexeu comigo!” Mexeram com Lula. “Lula livre!” Lula preso. “Não passarão!” Passaram. “Ele não!” Ele sim. Para os deprimidos, desalentados, inertes, dragados pelo poço sem fundo da realidade brasileira, prescreve-se uma dose de Mujica, esse Rivotril da esquerda mundial.

“Os únicos derrotados são os que cruzam os braços, os que se resignam à derrota”, disse o ex-presidente do Uruguai acerca da vitória do coiso domingo passado. “Não é o fim do mundo. Aprendemos com os erros e recomeçamos. Não devemos acreditar que quando vencemos tocamos os céus com as mãos e alcançamos um mundo maravilhoso, apenas subimos alguns degraus. É preciso ter humildade do ponto de vista estratégico. Não existe vitória definitiva, mas também não existe derrota definitiva.”

Remediados todos, é melhor Jair se acostumando: vai haver resistência, e ela se articula aqui e agora nos movimentos sociais, entre gestores de universidades, estudantes e até advogados empenhados em fazer do ofício uma barricada em defesa da democracia.

A liderança do MTST, mas, sobretudo, a campanha à Presidência, elevou Guilherme Boulos a ícone da incipiente “resistência”, termo que se impôs diante do discurso autoritário do presidente eleito, esquecido de desembarcar da campanha. Na terça-feira passada, lá estava Boulos sobre um caminhão de som em frente ao prédio do Masp, na Avenida Paulista, em protesto convocado pela Frente Povo Sem Medo e que atraiu uma aguerrida multidão.

“Bolsonaro foi eleito presidente, mas não imperador”, falou ao microfone, naquela empolgante retórica que transita entre Lula e Silvio Santos, o pastor de igreja e o sindicalista da CUT. “Ele não pode passar por cima dos valores democráticos, da liberdade de manifestação e expressão. Precisa respeitar a oposição e os movimentos sociais. Por isso estaremos nas ruas, pelas liberdades democráticas e por nossos direitos.”

Há poucos meses, para andar nas ruas bastava a Guilherme Boulos a companhia de Batoré, amigo-assessor cooptado nas fileiras da Gaviões da Fiel, onde também militou, embora secretamente dedicado a criar uma dissidência. Hoje Boulos está obrigado a acompanhar-se de três seguranças profissionais, porque os tempos são outros.

Na quarta-feira, deputados chegaram a colocar na pauta de votação do Congresso projeto que faz de MST e MTST organizações terroristas, através da inclusão de ambos na Lei Antiterror, herança maldita do governo Dilma. Guilherme Boulos e João Pedro Stedile, o líder do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, passariam a versões moderadas de Bin Laden, podendo ser presos à revelia de uma Constituição que prevê a função social da terra e dos imóveis urbanos.

criminalização do MST e do MTST é promessa de campanha de Bolsonaro, tão íntimo do livro da Constituição quanto deve ser do calhamaço a respeito de Churchill que estava sobre a mesa em sua primeira fala como presidente eleito – mais fácil que sirvam de aparadores de porta do que efetivamente de objetos de leitura.

“Nossos movimentos são legítimos e fazem uma luta histórica para resolver o problema do povo”, diz João Pedro Stedile. “Há um acórdão do STJ que garante a legalidade das ocupações como forma de pressão. Todas as autoridades, começando pelo presidente da República, devem cumprir a lei. O resto é fanfarronice para alimentar o ódio de classe.” “Não se acaba com movimentos sociais por decreto”, defende Boulos, “mas com reforma urbana e agrária.”

Enquanto não se combina isso com os russos do bolsonarismo, arma-se a resistência. “O que vai nos proteger não é corrermos para debaixo da tenda, mas a capacidade de aglutinarmos o povo”, diz Stedile.

“Enfrentaremos um governo muito parecido com o que foi Pinochet e está sendo Duterte nas Filipinas, um misto de práticas repressoras com um programa ultraneoliberal. Por isso estou propondo a criação de uma frente ampla em defesa da democracia e contra o fascismo, com a participação desde o PCO até FHC.”

Para Boulos, um embrião dessa frente se formou no segundo turno das eleições, “incluindo Marina Silva e setores do PSDB”. Terminada a campanha, “o protagonismo precisa deixar de ser dos políticos e passar a ser compartilhado com os movimentos negro, indígena, feminista, LGBT, algo que não tenha dono e que seja o mais diverso possível”.

Na noite de segunda-feira, Boulos reuniu-se com representantes de vários desses movimentos a convite de Pedro Serrano e Marco Aurélio Carvalho, advogados com reconhecida atuação na área dos direitos humanos. Ao arquitetar a criação de um “observatório” de juristas, estavam, nas palavras de Carvalho, “comprando mantimentos para a tempestade”.

Na prática, uma rede de mais de 250 advogados já está pronta a atuar na defesa daqueles em situação de vulnerabilidade diante da truculência do novo governo e de seus seguidores. “A violência não virá institucionalizada”, acredita Marco Aurélio Carvalho, “mas em ataques promovidos por milícias.

Ao mesmo tempo, tudo se fará para eliminar direitos conquistados, como as cotas.” Diversos parceiros estão juntos na empreitada: o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, o Instituto de Defesa do Direito de Defesa, a Rede Feminista de Juristas, a Associação Brasileira de Juristas pela Democracia. O observatório está apto a prestar assessoria jurídica às bancadas progressistas e denunciar abusos a organismos internacionais.

Uma das primeiras demandas do observatório vieram de reitores de universidades. Não é para menos. Desde a condução coercitiva que levou ao suicídio o reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, Luiz Carlos Cancellier, abundam os casos de violência que envolvem instituições de ensino.

Eleito Bolsonaro, os últimos dias foram pródigos na demonstração de que a boçalidade é a cátedra por excelência dos bolsonaristas.

Em Santa Catarina, a deputada estadual Ana Caroline Campagnolo (PSL, naturalmente) criou um canal para denúncias anônimas contra “professores doutrinadores”, insuflando estudantes a filmar docentes que porventura fizessem “manifestações político-partidárias ou ideológicas”.

A anta em questão notabilizou-se por processar a orientadora de sua tese de mestrado, gongada pela banca julgadora, acusando-a de “perseguição ideológica”. Perdeu o processo e ganhou a eleição.

Em julho, o próprio Bolsonaro gravara mensagem pedindo a estudantes que filmassem “professores, entre aspas”, e enviasse a ele as provas da doutrinação comunista a que estariam sendo submetidos.

“Eu tenho uma surpresinha pra eles”, disse o fã de Brilhante Ustra. Para Reinaldo Centoducatte, reitor da Universidade Federal do Espírito Santo e presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), “se professores doutrinassem mesmo os alunos, o resultado das eleições teria sido diferente”.

Em outro vídeo, aparentemente gravado antes da facada, Bolsonaro cita nominalmente vários professores da Fundação João Pinheiro, em Minas Gerais. “Se nós vivêssemos no regime que vocês defendem”, diz, “você não estaria vendo essa mensagem nesse aparelho maravilhoso que não é fabricado na Coreia do Norte e nem em Cuba”.

Como a gravação se espalhou na última semana, as aulas tiveram de ser suspensas porque os professores se sentiram ameaçados. Na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP), a imbecilidade materializou-se numa “foto-performance” em que três patetas com roupa militar, camiseta da campanha de Trump e armas de fogo anunciam a “nova era”, enquanto um quarto panaca segura uma bandeira ao fundo. Indagam: “Está com medo, petista safada?”

Como os absurdos se acumulam, acaba-se por perder o fio da meada. Todos os episódios relatados aqui, no entanto, encontraram vozes dispostas a resistir à enxurrada de chorume. A Procuradoria da República abriu inquérito civil contra a deputada Campagnolo, o Ministério Público vasculhou suas redes sociais e divulgou a foto em que ela aparece empunhando uma arma. A diretoria da Fundação João Pinheiro registrou ocorrência contra Bolsonaro.

A direção da FEA-USP abriu sindicância e prometeu que “ações que intimidem, ofendam e causem reações e danos serão rigorosamente coibidas e punidas”. A ver.

“Depois das eleições, a retórica do presidente eleito deveria ser de apaziguamento, mas não é o que se verifica”, diz Centoducatte. “Por isso estamos em interlocução com instituições com as quais há afinidade, como a OAB, a CNBB e a Academia Brasileira de Ciências. Se sentirmos um risco maior, vamos precisar estar articulados para defender a democracia.”

Na Universidade de Brasília (UnB) não se esperaram pelas sindicâncias. Meia dúzia de bolsominions dispostos a causar tumulto foram enxotados por uma multidão de estudantes da faculdade sob gritos de “Recua! Recua!”

Saíram escoltados pela Polícia Militar e por seguranças da UnB. Em outro episódio, o estudante Pedro Bellintani Baleoti, de 25 anos, apareceu em vídeo dizendo que estava indo votar “armado com faca, pistola, o diabo, louco pra ver um vadio, vagabundo com camiseta vermelha e já matar logo. Tá vendo essa negraiada?”, pergunta, ao apontar a câmera do celular para fora do carro. “Vai morrer! É capitão, caralho!” Aluno do Instituto Presbiteriano Mackenzie, Baleoti está sendo investigado por crime de racismo.

Em 1968, alunos do Mackenzie que apoiavam a ditadura entraram em conflito com estudantes da USP contrários ao regime, em episódio que ficou conhecido como Batalha da Maria Antônia, rua que abrigava os prédios de ambas as faculdades, na região central de São Paulo.

Um tiro disparado do Mackenzie matou o secundarista José Carlos Guimarães. Na terça-feira, as aulas na universidade foram interrompidas, e uma grande passeata exigiu a expulsão de Baleoti. Depois disso, o Mackenzie suspendeu o aluno, instalou sindicância interna e pode de fato expulsá-lo. Os tempos são outros.

 

 

Por Fred Melo Paiva

Fonte: Carta Capital