Crise na Moradia | O boom imobiliário e as cidades inviáveis
Com a explosão dos preços para a compra de um imóvel, aumentaram também os custos do aluguel e dos transportes públicos
Com o boom imobiliário vivido pelas cidades brasileiras nos últimos anos, especialmente entre 2009 e 2015, a chamada dispersão urbana foi radicalmente ampliada. A histórica especulação rentista baseada na propriedade fundiária e imobiliária foi potencializada a níveis nunca vividos nas cidades. Loteamentos fechados, errada e convenientemente chamados de condomínios horizontais, e os conjuntos habitacionais populares funcionaram como vetores de dispersão e fragmentação urbanas.
Em sete anos, aproximadamente, 788 bilhões de reais provenientes do FGTS, do Orçamento da União ou do setor privado foram investidos nos mercados residenciais urbanos, sem considerar as demais obras urbanas, tais como as de mobilidade e as de saneamento. Em vez da necessária regulação fundiária e imobiliária para aplacar o vendaval especulativo, governos e câmaras municipais flexibilizaram a legislação e ampliaram o perímetro urbano, incluindo verdadeiros latifúndios, principalmente nas cidades de porte médio.
Diferentemente de outras mercadorias, a moradia não tem queda do preço com o aumento da produção. Para que isso aconteça, as atividades especulativas devem ser freadas ou reguladas como acontece em países do capitalismo central para os quais a elite brasileira gosta muito de viajar.
A cidade hiperdispersa, como mostra vasta bibliografia sobre urbanismo, é insustentável do ponto de vista ambiental, mas também econômico e social. Dados da Associação Nacional de Transporte Público mostram o aumento nos últimos anos do tempo médio das viagens em todos os modais. Os dados indicam ainda uma alta do custo nos transportes individual e coletivo com a extensão das periferias.
Claro que a desoneração fiscal para a compra de automóveis, medida tomada pelo governo federal no mesmo período, tem sua parcela de responsabilidade nessa cena. Entre 2003 e 2014, o número de automóveis mais que dobrou nas ruas e avenidas, contribuindo para ampliar a irracionalidade resultante da ocupação do solo orientada pelo rentismo fundiário e imobiliário.
A cidade dispersa resulta muito mais cara e improdutiva, pois acarreta a elevação do custo de implantação das redes de água, esgoto, drenagem, iluminação pública, dos serviços de coleta de lixo domiciliar, saúde, educação etc.
Mas se muitos perdem com a extensão da ocupação urbana rarefeita, poucos ganham e ganham muito. O rentismo imobiliário funciona como uma espécie de ralo da riqueza social que se cola no preço das propriedades. A burguesia brasileira parece ter migrado da atividade industrial, que cai a partir de 1980, para os rentismos imobiliário e financeiro.
As formas como se deram os acordos entre proprietários de imóveis, capitais ligados à produção do ambiente construído e investimento público chegaram a promover aumentos de até 700% no preço de imóveis, entre 2002 e 2012, na cidade do Rio de Janeiro, apenas para citar um caso.
Redirecionar o caminho tomado pelas cidades exige contrariar interesses seculares no Brasil. A partir do fim dos anos 80, parecia que caminhávamos nessa direção. Logramos aprovar um dos arcabouços legais que estão entre os mais avançados do mundo. Inútil, pois a legislação não tem sido aplicada. Mais: o Judiciário mostra desconhecê-la na maior parte dos julgamentos.
Sentenças que determinam despejos de populações vulneráveis, como em Pinheirinho, em São José dos Campos (SP), e desapropriações com remunerações milionárias, mesmo em caso de imóveis cujos proprietários devem milhões em impostos, mostram que manter a propriedade ociosa pode contrariar a lei (que prevê sua função social), mas é bom negócio.
É hora de repensar as cidades. A defesa de algumas condições é elemento de unidade para urbanistas do mundo todo, em que pese a diversidade das cidades e regiões. A cidade compacta, contrária à dispersão horizontal, a mobilidade ativa (mais viagens a pé ou de bicicleta), o mix de usos (viabilizando a rua viva e segura durante a noite e o dia) são características que devem se somar à cidadania informada e participativa e ao combate à desigualdade de renda, raça e gênero. Nossas cidades que têm um histórico de desigualdade social e patrimonialismo estão bem longe dessas condições. Há muito trabalho pela frente.
Um bom começo para a retomada de Um Projeto para as Cidades do Brasil (BrCidades) seria ampliar as informações sobre elas. Começar, por exemplo, pelo conhecimento dos grandes proprietários urbanos, especialmente das terras e dos imóveis vazios e ociosos, a concentração das propriedades e as dívidas em IPTU.
São Paulo é uma das poucas cidades no Brasil, se não a única, a abrir publicamente o cadastro imobiliário fiscal do IPTU, que aconteceu durante a gestão de Fernando Haddad, por meio da plataforma Geosampa. Muitas e importantes informações vieram à tona.
Em maio de 2016, a prefeitura disponibilizou por meio do Geosampa a base completa do cadastro imobiliário fiscal do IPTU do município de São Paulo inteiro, em formato aberto. Em outras palavras, qualquer cidadão pode ter acesso aos proprietários de todos os imóveis da cidade. Qual a importância?
A plataforma, ancorada nas diretrizes do plano diretor, reúne mais de 150 tipos de dados georreferenciados, dentre eles cerca de 12 mil equipamentos urbanos, consulta do zoneamentos atuais e antigos, rede de transporte público, infraestrutura urbana, mapas geotécnicos e dados populacionais. O cadastro tem 3,3 milhões de registros imobiliários. Destes, 8 mil são registrados em nome da prefeitura, governo estadual e União.
Não mais que 1% dos donos de imóveis na cidade concentra 45% do valor imobiliário de São Paulo. São 749 bilhões de reais em casas, apartamentos, terrenos e outros bens registrados no nome de 22,4 mil proprietários, os mais ricos entre 2,2 milhões de donos de imóveis da capital. Em dados quantitativos, isso representa 820 mil imóveis.
Os bens imobiliários desse 1% se dividem em três grupos. O primeiro é composto de imóveis caros em áreas ricas da cidade: quase metade desse patrimônio está em 10 dos 96 distritos paulistanos mais valorizados: Itaim, Jardim Paulista, Pinheiros, Santo Amaro, Moema, Vila Mariana, Morumbi, Consolação, Bela Vista e Vila Andrade. O segundo tem galpões e outras áreas de grande metragem em antigos bairros industriais, como Barra Funda, Brás, Lapa e Vila Leopoldina. Por último, há vários terrenos vazios nas franjas da cidade, em distritos como Cidade Tiradentes.
O empresário João Carlos Di Genio, fundador do Grupo Objetivo e da Universidade Paulista, uma das maiores instituições educacionais do País, tem mais de 1 bilhão de reais em imóveis. O segundo no ranking é o empresário Hugo Eneas Salomone, fundador da Construtora e Imobiliária Savoy, que tem 66 anos de história e é proprietário de ao menos 180 mil metros quadrados, dos quais 93 mil no Centro da cidade. Dentre eles o Shopping Aricanduva, Shopping Central Plaza, Shopping Interlagos, Galeria Olido e grande parte do Conjunto Nacional.
Em terceiro lugar no ranking está o espólio da mãe do deputado federal Paulo Maluf e do empresário Alécio Pedro Gouveia, um dos donos da rede de supermercados Andorinha. Seus 19 imóveis valem quase 450 milhões de reais. Entre eles há terrenos e galpões que pertenciam à Eucatex, empresa fundada por Salim Maluf, pai do ex-prefeito.
O desembargador José Antônio de Paula Santos Neto, com salário de 30.471,11 reais, além de receber auxílio-moradia, tem 60 imóveis registrados em seu nome. O patrimônio do desembargador inclui apartamentos em bairros valorizados da capital paulista, entre eles Bela Vista, Perdizes, Pacaembu, Cerqueira Cesar, Higienópolis e Morumbi.
A questão da terra (rural e urbana) continua, há 500 anos, situada no centro do conflito social no Brasil. Há muitos interesses em jogo, lobbies fortes e bem organizados econômica e politicamente, inclusive internacionalmente. A ONG Transparência Internacional realizou pesquisa na qual demonstra que 3,4 mil imóveis em São Paulo avaliados em 8,5 bilhões de reais estão ou estiveram registrados em nome de empresas offshore.
Por outro lado, existem os excluídos de sempre, que passam horas espremidos nos transportes públicos na metrópole de São Paulo, sacrifício que tem tudo a ver com os processos de valorização imobiliária e segregação urbana.
Vamos aplicar as leis. Não cabe mais ingenuidade sobre a dimensão que assumiu esse conflito. É por aí que poderemos retomar a luta por cidades mais justas, produtivas e sustentáveis.
Por Ana Gabriela Akaishi, arquiteta e urbanista, e Ermínia Maricato, professora de pós-graduação da FAU e coordenadora do BrCidades
Fonte: Carta Capital