Guilherme Boulos: A marcha de seu Carlinhos
Fonte: Carta Capital
Por Guilherme Boulos, coordenador nacional do MTST
Símbolo da ocupação do MTST em São Bernardo, ele foi um entre milhares que andaram 23 quilômetros para defender seus direitos
Na terça-feira 31, seu Carlinhos nem dormiu. Passou a noite envolvido com os preparativos da grande marcha que logo cedo sairia da ocupação Povo Sem Medo de São Bernardo até o Palácio dos Bandeirantes, sede do governo de São Paulo. Para o mineiro da pequena cidade de João Monlevade, a caminhada de 23 quilômetros não era exatamente uma novidade.
Trabalhou mais de 20 anos em ferro-velho e, depois, passou a puxar uma carroça de reciclagem todos os dias pelas ruas no ABC paulista.
“Trabalhava com construção civil. Após sofrer um acidente, fui para o ferro-velho. De uma hora para a outra, o dono sumiu. Tinha uma casa no local de trabalho, um lugar que o meu patrão deixava eu ficar, mas a família dele me expulsou”, relata. “Acabei em um quartinho nos fundos da casa, de 4 por 4 metros. Fizeram um muro de 3 metros de altura e me isolaram no mato.”
Foi nessa situação que tomou contato com o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Prestativo e solidário, querido por todos, seu Carlinhos tornou-se um símbolo da ocupação de São Bernardo, a maior do País.
Como seu Carlinhos, muitos outros trabalhadores no Brasil não têm moradia adequada. Para ser exato, são 6,2 milhões de sem-teto, de acordo com o IBGE. Não por falta de luta ou esforço, mas pelas circunstâncias da vida. Esse povo, que desde muito cedo se acostumou a lutar pela sobrevivência, caminhou por nove horas para levar ao governador Geraldo Alckmin sua pauta de reivindicações.
Mais do que caminhar, seu Carlinhos, pai de cinco filhos, contribuiu para a preparação da marcha. Não é algo simples organizar uma caminhada tão longa e com tanta gente. Cada uma das 19 cozinhas coletivas da ocupação responsabilizou-se em preparar o almoço dos milhares de sem-teto que marchariam. Toda a comida servida foi doada em um grande movimento de solidariedade a envolver toda a região.
A luta está estampada na vida daqueles trabalhadores. São milhares de histórias como a de seu Carlinhos que compõem as ocupações por moradia neste País. Como ele, muitos vieram para a cidade em busca de trabalho e encontram as portas fechadas, mas persistem, insistem, fazem bicos, catam latinhas, procuram uma faxina ou um canto para roçar e ganhar uns trocados.
Aqueles que, num discurso fácil, chamam de oportunistas os lutadores sem-teto ignoram completamente a vida dos que estão lá. Por algum motivo nebuloso, acreditam que a preguiça ou a delinquência levam milhares de pessoas a ficarem no barro e na lona.
A motivação seria, nessa visão preconceituosa, a vontade de passar a perna ou, como disse o prefeito de São Bernardo, “passar na frente dos que estão nos programas habitacionais do município”.
Se os sem-teto são preguiçosos, andariam mais de 23 quilômetros por “puro vitimismo”? Ao sair da terra natal, seu Carlinhos buscava uma vida melhor, com dignidade e trabalho. “As coisas estavam muito difíceis na roça. A gente tinha uns amigos que falavam de São Paulo como uma perspectiva de futuro.” Lamentavelmente, após tanto tempo na “cidade grande”, o futuro não veio. Com mais de 60 anos, uma vida dura de muito trabalho, não tem sequer um teto para se abrigar.
Os sem-teto já lutam todos os dias desde pequenos, como seu Carlinhos. A marcha dele não começou no dia 31. Antes mesmo de sair do interior de Minas Gerais, lutava contra a falta de terra e trabalho.
Em São Paulo, trabalhou na construção civil, depois no ferro-velho e, hoje, luta na ocupação. Cada um dos milhares de sem-teto que participaram dessa incrível marcha tem uma história marcada por sofrimento, privação e injustiças.
O que os uniu na mesma batalha foi o simples fato de, depois de tanto marchar na vida, não terem sequer um lugar digno para se abrigar. Não apenas em São Bernardo, mas em ocupações por todo o País, são muitos os que não vivem do trabalho dos outros, não vivem de propina nem da corrupção. Buscam direitos e dignidade. Seriam eles os vagabundos?