Black Mirror, Doria e Bolsonaro
Fonte: Carta Capital
Por Guilherme Boulos
Como o personagem Waldo da série, a popularidade do prefeito de São Paulo e o deputado federal é alimentada pelo ódio à política
Não sei se todos os leitores assistiram à série Black Mirror. Àqueles que não, recomendo, pelo que diz sobre as formas de dominação política na era das redes sociais. Há nela um episódio especialmente ilustrativo, chamado Momento Waldo.
Waldo foi uma criação virtual, feita para um programa de humor, que atacava os políticos num misto de agressividade e ironia. Levava seu público ao delírio com pegadinhas que encurralavam os “convidados”, destruindo qualquer margem para uma resposta racional.
Pesquisas mostraram a força do “fenômeno Waldo”. Tornou-se candidato – ele mesmo uma criatura virtual – com um discurso fácil de desmoralização da política e do debate. O fenômeno ganhou o mundo, passando por cima de seu criador e de qualquer escrúpulo.
Nunca a política esteve em simbiose tão profunda com o marketing. Com o espetáculo, diria Guy Debord. Cada gesto é medido de acordo com sinais de audiência, grupos de pesquisa qualitativa e potencial de viralização nas redes.
Essa estereotipação da política foi responsável por acelerar o descrédito dos sistemas de representação “democrática” em todo o mundo. Vivemos uma crise de representatividade em escala global. Só num contexto como este é possível compreender como um bufão, apresentador de reality show, pôde tornar-se presidente dos Estados Unidos.
Trump e Waldo são o mesmo fenômeno. Na esteira da antipolítica, Trump ganhou as eleições, diferenciando-se dos candidatos com “discurso ensaiado”, do “politicamente correto”. Esta lógica desafiou os marqueteiros tradicionais: quanto mais disparates dizia, mais crescia nas pesquisas.
Ao misturar um discurso de senso comum com boas doses de machismo e xenofobia, construiu sua campanha vitoriosa. É evidente que não foi apenas isso. Trump soube mexer com ressentimentos profundos dos norte-americanos, mas sobretudo mostrou que a agressividade e a intolerância podem ser um trunfo para diferenciar-se do político bom moço, padronizado.
Ou seja, a antipolítica não é em si libertadora. Pode ser a porta de entrada do fenômeno Waldo. No Brasil, Waldo pode ser Jair Bolsonaro, ou João Doria, ou qualquer outro que venha a aparecer. A mesma lógica do espetáculo que acentuou a crise de legitimidade da política oferece sua saída trágica para ela.
Por outro lado, esta crise é expressão de frustrações reais e justificadas com as formas de representação. No caso brasileiro, temos um sistema político em pandarecos, incapaz de responder às demandas da maioria da sociedade.
A Nova República, inaugurada com a Constituição de 1988, faliu. Desmoronou por ter se demonstrado incapaz de promover democracia social, bloqueando o necessário enfrentamento aos escandalosos privilégios da casa-grande. E faliu também por ver expostas em praça pública suas entranhas, as engrenagens de funcionamento para a construção de maiorias políticas.
O regime político da Nova República ainda vigora, é verdade. Aliás, mediante um governo que expressa da maneira mais acentuada as razões de seu fracasso. Não tem mais, porém, a capacidade de promover a coesão da sociedade. Perdeu hegemonia. Numa situação de transição como esta, há o risco de uma “solução Waldo”, mas também se abre a possibilidade de saídas mais interessantes.
A construção de uma alternativa de radicalização democrática, que ouse colocar o enfrentamento aos privilégios da elite econômica e política e, ao mesmo tempo, construa novas formas de participação, pode ser capaz de canalizar a rejeição à política para caminhos efetivamente libertadores.
Foi neste registro, por exemplo, que o Podemos floresceu como alternativa na Espanha diante do mesmo cenário de crise de representação, ali materializada no movimento dos Indignados.
Nesta encruzilhada, a esquerda brasileira tem duas opções. Pode combater a desmoralização da política, defendendo os valores do regime, reivindicando apenas a retomada da normalidade. Se o fizer, como esquerda da ordem, perde capacidade de dialogar com o sentimento difuso de rejeição à política, deixando que essa corrente de insatisfação deságue toda na direita.
Ou pode reinventar-se, trazendo ao horizonte um programa ousado de enfrentamento a privilégios e uma proposta de radicalização democrática como saída à crise da Nova República. Só assim poderá ser capaz de canalizar parte da onda antipolítica.
Não se fala aqui apenas da próxima eleição. Trata-se da disputa do projeto de País para as próximas décadas. Ou a esquerda se reinventa ou talvez tenha de assistir à solução Waldo cativar a maioria da sociedade brasileira.