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Impunidade | Massacre do Carandiru e a condenação anulada: o pior cenário em 26 anos

2 de outubro de 2018

O TJSP atuou para impedir a responsabilização e blindar as autoridades. E mostrou, ainda, que discursos que defendem o ocorrido como legítima defesa dos policiais encontram eco entre desembargadores daquela casa

Detentos mostram panos sujos de sangue após o massacre, em outubro de 1992. | Foto por Marlene Bergamo/Folhapress

Todos os anos, desde que iniciamos a pesquisa em 2011, escrevemos sobre o caso Carandiru no dia 2 de outubro, o dia em que os meios de comunicação abrem uma janela para falarmos do massacre. Depois de esperar 10 anos para que a decisão de pronúncia (decisão que encaminha o caso ao plenário do júri) fosse confirmada pelo TJSP, acompanhamos, a partir de 2013, finalmente, a realização das sessões plenárias para discutir a responsabilidade dos policiais militares acusados pelo massacre. Foram cinco sessões plenárias, 20 dias de júri, 35 jurados e mais tantos servidores da justiça mobilizados para que as sessões acontecessem. Ao final de cada uma delas, os veredictos foram a condenação dos policiais por terem concorrido para a morte dos 111 cidadãos presos. Não foi um resultado trivial. Não havia até então um pronunciamento do sistema de justiça brasileiro reprovando o que acontecera naquele 2 de outubro. Nos idos de 2001, o coronel Ubiratan, que comandou a operação, foi considerado culpado pelo júri popular, mas essa decisão foi revertida, em 2006, em um lance de todo inesperado da câmara especial do TJSP e não menos questionável diante do princípio da soberania dos veredictos. A câmara anulou parte dos quesitos respondidos pelos jurados e “interpretou” sua decisão como uma absolvição. Absolutamente surpresos diante de tal “interpretação”, em entrevista à Folha de São Paulo, os jurados negaram a intenção de absolver Ubiratan. O caso foi tão escandaloso que motivou um dos pontos da reforma à regulamentação do sistema do júri em 2008, que objetivou simplificar o procedimento da quesitação, tornando também menos suscetível a mal-entendidos ou manipulações. A reforma prevê que se faça diretamente uma pergunta final aos membros do júri: “o jurado absolve o acusado?”.

Mas o fato é que, diante da intervenção “heterodoxa” do TJSP para livrar o coronel, até 15 de abril de 2013 (data da realização do primeiro júri) não havia qualquer condenação em pé, na qual se lesse que a justiça brasileira reconhecia a ocorrência de um massacre merecedor de reprovação. As condenações aos policiais, assim, vieram comunicar essa reprovação em um momento crucial da nossa história. Outros casos de violência policial estavam em aberto. Por exemplo, as execuções de quase 500 pessoas pela polícia na semana após os ataques do PCC, em 2006, estavam sem solução. Outro lamentável exemplo surgiu seis anos depois, em 2012, quando a situação voltou a se repetir quase da mesma maneira, com o número de mortos em chacinas nas periferias aumentando consideravelmente —um estudo feito à época indica que, entre abril e dezembro daquele ano, 255 pessoas morreram em ações “estilo execução”.

A política dos autos de “resistência seguida de morte” reproduzia e atualizava, mais de vinte anos depois, a mesma narrativa em disputa nas primeiras páginas do processo de mais de 2 mil páginas: a polícia afirma que agiu em legítima defesa, diante do ataque de “bandidos” perigosos e armados, enquanto fatos e laudos apontam para a triste realidade das execuções sumárias. Os casos de violência policial que se seguiram após o massacre repetiam em menor escala a mesma mecânica – a eliminação física de cidadãos por agentes do Estado acobertadas por alegações de legítima defesa, alterações da cena do crime, armas plantadas nas mãos das vítimas.

Essa narrativa esteve em disputa nos 5 júris do caso Carandiru —realizados entre 15 de abril de 2013 e 09 de dezembro de 2014— até que os 35 cidadãos do povo que naquela situação assumiam o status de julgadores finalmente chegassem ao veredicto que, além de condenar os 74 policiais militares, afirmou que um episódio como aquele não seria aceito em nossa democracia, sob nenhuma justificativa. Em um cenário no qual a polícia é ainda bastante violenta e a vida de um cidadão preso vale muito pouco, essa decisão, ainda que tardia, sinalizou que a justiça poderia tardar, poderia não acertar sempre (como sabemos, ela é seletiva), poderia ser imperfeita (como também sabemos, as autoridades não foram responsabilizadas), mas não deixaria de condenar um episódio tão grave.

Esse patamar de aparente civilidade durou pouco. Em setembro de 2016, ao julgar as apelações da defesa, por maioria, a 4ª Câmara do Tribunal de Justiça de São Paulo anulou as condenações, pois elas teriam sido “manifestamente contrárias à prova dos autos” (art. 593, III, d, Código de Processo Penal), determinando que fosse realizado novo julgamento pelo tribunal do júri. O voto vencido do desembargador Ivan Sartori fez pior, pois determinava que os policiais fossem diretamente absolvidos, algo que foi recusado por seus colegas Camilo Léllis e Edison Brandão. Ainda assim, a decisão final, por dois votos a um, embora não absolvesse os réus, fez o jogo voltar à estaca zero.

Esse resultado não foi problemático apenas do ponto de vista político. Juridicamente, essa decisão é também incompatível com o princípio da soberania dos veredictos do júri. Realizamos, no Núcleo de Estudos sobre o Crime e a Pena da FGV, uma pesquisa que buscou investigar com que frequência um júri era anulado pela 4ª Câmara e sob quais fundamentos. Ao analisarmos todas as decisões dessa câmara em 2017 que continham a expressão “manifestamente contrária à prova dos autos” em seus textos, descobrimos que nunca houve uma hipótese de absolvição direta e as anulações em geral são bastante raras – dos 76 casos analisados, apenas 6 foram anulados. Interessante notar que, dessas 6 anulações, apenas uma corresponde a um caso de condenação em primeira instância, os demais foram anulações de veredictos absolutórios. Dentre os casos em que a câmara decidiu manter o veredicto, em apenas um deles se tratava da manutenção de uma absolvição, e se tratava de um caso em que o réu era um PM. Além disso, descobrimos que a referida câmara defende que um júri só pode ser anulado se a posição dos jurados não se sustentar em nenhum elemento de prova (Apelação 0007952-31.2011.8.26.0168) ou apenas em decisões arbitrárias (Apelação 0027956-18.2015.8.26.0114), absurdas ou teratológicas (Apelação 0017285-39.2014.8.26.0576). Ainda segundo a 4ª Câmara, “optando os jurados por uma das apresentadas teses, descabe falar-se em decisão manifestamente contrária à prova dos autos” (Apelação 0003834-17.2015.8.26.0024).

O caso do Carandiru é uma dessas hipóteses de anulação descabida. Ao decidirem pela condenação, os jurados ali aderiram à tese defendida pela promotoria, que foi embasada em laudos e testemunhos. Tratava-se de uma tese em disputa: a acusação alegava que um massacre havia ocorrido, sustentando tal alegação por meio da comprovação de sinais claros de uso excessivo da força e de execuções sumárias; já a defesa afirmava que policiais em um ambiente escuro e inóspito apenas revidaram à agressão dos presos amotinados. Em todos os cinco veredictos, os jurados entenderam que a primeira tese foi comprovada: houve massacre e os policiais deveriam ser responsabilizados. A 4a Câmara, contrariando seus próprios precedentes, anulou os veredictos porque discordou do resultado escolhido pelo conselho de sentença, em clara afronta à soberania do júri. Ao interferir na decisão, contudo, afirmou —quase retoricamente— que o princípio seria resguardado porque a nova decisão seria tomada por um novo júri e não pelo tribunal diretamente, como pretendia Sartori, cujo voto não encontra respaldo em qualquer precedente e é tão ilegal e arbitrário, que faz com que os votos vencedores pareçam razoáveis ou salomônicos, quando, na verdade, promovem também uma intervenção indevida na decisão dos jurados.

Enquanto a única manifestação da justiça brasileira reprovando o massacre perdeu sua validade jurídica, uma nova rodada de recursos teve início. Nessa nova etapa, o caso se perde em meandros processuais e se afasta cada vez mais dos fatos. As decisões proferidas nessa sucessão de idas e vindas estão cada vez mais longe de comunicar a reprovação àquele episódio.

O fato de o julgamento ter sido por maioria e não por unanimidade permitiu que a defesa interpusesse um recurso (embargos infringentes) aos cinco integrantes da câmara, com o objetivo de fazer valer a decisão minoritária de Ivan Sartori, a absolvição de todos os réus. Em abril de 2017, os embargos infringentes também foram rejeitados, pelo placar de quatro votos a um. A absolvição foi afastada pelo TJSP, mas as condenações seguiram anuladas.

A promotoria lança-se então em inglória batalha para tentar levar a decisão do TJSP às cortes superiores. O caminho desses recursos, que se iniciou há mais de um ano, é tortuoso, já que as possibilidades de acessar esses tribunais são cada vez mais estreitas. A defesa pode acessar o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF) pela via do habeas corpus, mas para o Ministério Público (MP) fazer valer uma condenação a única via é chegar aos Tribunais Superiores em Brasília com os recursos especial e extraordinário.

Ocorre que a apreciação desses recursos depende da observância de certos requisitos. A análise que determina a presença ou ausência desses requisitos é chamada “juízo de admissibilidade”. Caso eles estejam presentes, o recurso é “conhecido”. No que concerne ao recurso especial, que é dirigido ao STJ, um dos requisitos consiste na exigência de que o recurso se manifeste contra um acórdão (decisão judicial tomada por órgão colegiado) no qual esteja explícita a contrariedade à lei federal —por exemplo, o Código Penal ou o Código de Processo Penal. Já em relação ao recurso extraordinário dirigido ao STF, deve-se demonstrar que o acórdão contra o qual se recorre contém contrariedade à Constituição Federal. Em ambos os recursos, para compreender as razões de recorrer, deve bastar que os ministros daqueles tribunais superiores leiam o acórdão contra o qual se recorre, sem que seja necessário analisar os autos do processo ou os fatos aos quais ele se refere. Essa limitação exige, portanto, que o acórdão do tribunal seja completo e traga todos os elementos que serão discutidos nas cortes superiores. Se isso não acontecer, os recursos não são admitidos.

Por essa razão, para garantir que o acórdão contenha todos os elementos que caracterizam os motivos dos recursos e assegurar a sua admissibilidade, o MP, após a decisão do TJSP que anulou os veredictos, opôs embargos de declaração (recurso cujo objetivo é esclarecer dúvida, eliminar contradição, suprir omissão ou corrigir algum erro material em decisão judicial), solicitando que a 4ª Câmara se manifestasse sobre todos os pontos alegados pela acusação para sustentar a tese da necessidade da condenação dos réus. Em novembro de 2016, essa mesma Câmara rejeitou os embargos, negando quaisquer omissões ou contradições em sua decisão.

Com isso, mesmo assim, a acusação interpôs recurso especial, buscando a anulação da decisão da apelação proferida pelo TJSP, devido às ofensas ao Código Penal e ao Código de Processo Penal, e o restabelecimento da validade daquilo que fora definido pelo tribunal do júri. Além disso, por meio do recurso extraordinário ao STF, o Ministério Público pleiteou o reconhecimento de ofensa ao princípio constitucional da soberania dos veredictos do júri (art. 5º, XXXVIII, c, da Constituição Federal).

Quem julga a admissibilidade desses recursos, inicialmente, é o próprio TJSP e depois o encaminha às instâncias superiores. O recurso especial foi admitido pelo TJSP, mas o extraordinário não, o que levou a acusação a interpor outro recurso (agravo de instrumento) contra essa decisão, a fim de que a admissibilidade do recurso extraordinário fosse analisada pelo próprio STF.

A admissão do recurso especial fez com que o caso pudesse subir ao STJ. O imbróglio processual ficou então por conta do Ministro Joel Paciornik. Ao ter diante de si o recurso admitido, determinou que a 4ª Câmara Criminal do TJSP julgasse novamente os embargos de declaração opostos pela acusação após o julgamento da apelação, pois havia omissões ainda não sanadas na decisão. Ora, os embargos de declaração tinham por objetivo garantir a admissibilidade do recurso. Os embargos foram negados pelos desembargadores, mas o recurso já fora admitido. Tendo em vista que esta etapa estava vencida, o Ministro poderia ter encaminhado o caso para que se decidisse logo sobre o seu mérito —ou seja, a reversão da decisão do TJSP que anulou os júris e, com isso, restabelecer a condenação dos policiais—, mas achou melhor, voltar mais uma casa, fazendo o caso retornar ao TJSP para um novo julgamento dos embargos de declaração.

Em razão disso, o TJSP, em maio de 2018, julgou novamente os embargos de declaração. E novamente os rejeitou, apontando que a matéria questionada já fora bem esmiuçada quando do julgamento do recurso de apelação que resultou na anulação dos veredictos.

A intervenção do STJ ainda gerou outros ecos no processo: devido à anulação do primeiro julgamento dos embargos de declaração, o TJSP entendeu que todos os atos subsequentes àquele acórdão anulado também haviam sido anulados. Ou seja, os desembargadores do TJSP concluíram que será necessário também realizar novo julgamento dos embargos infringentes.

Por sua vez, o relator do caso no STF, o Ministro Roberto Barroso, há pouco mais de dez dias, ao invés de julgar a admissibilidade do recurso extraordinário, decidiu julgá-lo prejudicado por conta da anulação da primeira decisão dos embargos declaratórios, realizada pelo STJ. E o fez mesmo sabendo que a segunda decisão não mudara uma vírgula no acórdão que julgou a apelação, ou seja, que, essencialmente, os fundamentos para interposição do recurso extraordinário também não seriam modificados.

Esse interminável jogo de vai e vem processual faz parecer que o caso virou uma batata quente no sistema de justiça, em que a força da decisão anulatória —esta, sim aberrante — do TJSP se mantém diante do omissão das cortes superiores exercerem controle sobre o dito tribunal.

O passeio pelo STJ e STF fez apenas com que o caso andasse ainda mais para trás. Nos próximos passos, teremos novamente o julgamento dos infringentes, em que, mais uma vez, se analisará se a tese da absolvição defendida pelo desembargador Ivan Sartori tem cabimento.

Além do mais, após o segundo julgamento dos embargos de declaração, novos recursos especial e extraordinário já foram interpostos pelo Ministério Público, recomeçando a batalha para que sejam admitidos. Espera-se que o STJ ou o STF revertam a decisão da 4a Câmara do TJSP antes que o caso prescreva e que um julgamento de mérito (condenação ou absolvição) definitivamente deixe de ser possível na justiça brasileira.

Chegamos hoje aos 26 anos do massacre do Carandiru no pior cenário possível. Enquanto um dos candidatos à presidência da república defende explicitamente a brutalidade pela polícia e a imunidade de crimes praticados por policiais, o sistema de justiça apagou as únicas manifestações que condenavam esse tipo de ação. Em mais um lance inacreditável, o TJSP atuou para impedir a responsabilização e blindar as autoridades. E mostrou, ainda, que discursos que defendem o ocorrido como legítima defesa dos policiais encontram eco entre desembargadores daquela casa. As cortes superiores, por sua vez, não mostraram até agora disposição de reverter os abusos do Tribunal e fazer valer o princípio da soberania do júri. Entre mal-intencionados, equivocados ou omissos, os juízes togados que atuam nesse caso parecem não se importar com o fato de que, 26 anos após a maior matança de pessoas sob custódia do estado, não conseguimos garantir que um episódio como esse seja reprovado pela justiça.

 

 

Por Marta R. de Assis Machado e Maira Rocha Machado, professoras de Direito na Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Fonte: El País Brasil